O velho tigre Jorge Luis Borges





















O escritor argentino Jorge Luis Borges deixou uma obra incomparável em língua espanhola, pela capacidade inventiva e pelo poder das metáforas, mas dizer isso é algo como chover no molhado. Borges é o arquiteto de uma obra dominantemente ficcional, condensada no plano das invenções e das realidades construídas somente desse vapor e pó de traque (que no entanto é quase concreto armado) que se chama poesia.


Viajante

Nos seus últimos anos, Borges viajou incansavelmente pelo mundo com a esposa, Maria Kodama, sua ex-aluna e secretária particular. 
Passava no máximo dois ou três dias em cada lugar, sem dar muita importância à cegueira ou à velhice; a pele cada vez mais manchada, daquelas manchas que não se sabe se são apenas um truque ou sinais de acúmulo de vida. Porque ele era um ser tirante a homem que já se transformava em tigre.
Mas houve um tempo de tamanha angústia em que ansiou pela morte. E com tal intensidade que chegou a afirmar que morrer era para ele a última esperança. 
Estava convicto disso. 
Um dos poemas feitos em homenagem a Borges, “Buenos Aires”, fala desse momento crucial: 

Debaixo da infelicidade 
a maior esperança: morrer
quando as luzes se apagam
e sob as sombras da lua
não há quase nada.

Intentava escrever prefácios para cem livros. Ainda assim – sempre que a ele se referiam como um dos últimos sábios sobre a Terra – dizia: “Não, não tenho nenhuma sabedoria. Na verdade li muito pouco, escrevi alguns livros somente”.


Viejo brujo

Ainda chove quando termino de ler os poemas e um dos contos rígidos do viejo brujo. O que toca (quase um anestésico) e o que encanta de imediato, quando ainda sigo embalado pelo som de piano da chuva fina e sem fim, sem sono, é a enganadora simplicidade do verso do poeta argentino, a precisão da palavra inesperada, essa habilidade de dizer as coisas clara e sabiamente. 
A frase exata denuncia o esforço da comunicação desejada como transparência e elucidação, até a última gota.
Há autores cujo entendimento só é possível após um esforço massacrante, que asfixia; outros há que conseguem aliar a competência estilística à comunicação impressionante, que não se esgota, que se abre a significados preciosos, ao mesmo tempo múltiplos.
Jorge Luís Borges é desses autores que conseguem comunicar esplendidamente sem ser frívolo (absolutamente), o que, não se enganem, é em literatura um artigo raro desde sempre.



O outro tigre


Penso num tigre. Esta penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há em seu mundo nomes nem passado,
E nem porvir, só um instante certo)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
De todos os odores o da aurora
E o olor deleitável do cervo;
Em meio às riscas do bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob a pele esplêndida que vibra.
Debalde interpõem-se os convexos
Mares e desertos do planeta;
E desta morada de um tão remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre das margens do Ganges.

Escorre a  tarde em minha alma e conjecturo

Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários 
E de reminiscências da enciclopédia,
Não o tigre fatal, a aziaga joia
Que sob o sol ou a cambiante lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de ócio, amor e morte.
A esse tigre simbólico eu quis opor
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima a manada de búfalos
E hoje, 3 de agosto de 59,
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjecturar-lhe a circunstância
o faz ficção da arte e não criatura
Vivente, dessas que andam pela Terra.

Procuraremos um terceiro tigre.

Este, como os demais, será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além das vãs mitologias,
Pisa a Terra. Bem o sei, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Pelo tempo da tarde na procura
Do outro tigre, o que não está no verso.

(Jorge Luis Borges, El Hacedor)



Ditando palavras

O menino Borges decidiu a certa altura ser escritor. Tomou da pena e do lápis e, aos oito anos de idade, escreveu seu primeiro conto: “La visera fatal”. 
Oitenta anos mais tarde, cego, velho, encurvado sob o peso da idade, ainda prosseguia ditando palavras. Primeiro para a mãe, Leonor; depois para a secretária particular, amiga e finalmente esposa, Maria Kodama. 
Seguiu publicando livros que ditava por inteiro, cada vez mais reveladores de uma paisagem pessoal, tão subjetivamente própria que mais pareciam lugares da Argentina, um canto de Buenos Aires, um sopro da América Latina. 
Esperava o Nobel, que não chegou até a sua morte em 1986.
Traduziu aos nove anos O príncipe feliz, de Oscar Wilde, que foi publicado no jornal El País. Essa precocidade não deveria espantar, pois mesmo antes de falar espanhol, sua avó paterna já lhe havia ensinado a falar inglês. Tinha fascinação pelo idioma ianque e, mais tarde, ao lado de Maria Kodoma, principiou a estudar o inglês antigo. 
Borges dizia ter lido pouco: Dickens, Tolstoi, Eça de Queiroz; dizia ter escrito alguns livros, somente; dizia que se tivesse nascido séculos antes sequer seria lido; seria quem sabe ignorado. Autores eram para ele Dante, Shakespeare, Virgílio...


Modernista

Depois de participar do movimento vanguardista literário espanhol denominado de ultraísmo, Borges (ao retornar à Argentina) filiou-se ao movimento ­modernista. Durante aproximadamente sete anos, escreveu uma série de ensaios, contos e poemas, mas só em 1928 a ­crítica se rendeu ao talento do Tigre. Sua obra refletia a erudição conquistada desde a infância, sob a influência da mãe Leonor, da avó paterna e do pai, o advogado e professor Jorge Guillermo Borges.
“Não sou sábio. Li e reli quase sempre os mesmos livros”, falava com ironia maleável na voz ­pungente. 
Era sábio, sim.
Perdera a visão – como leitor – no ano de 1955, o que o fazia lembrar uma fase de Steiner: “Quando algo se acaba, precisas saber como se inicia”. E Borges dizia então ter voltado ao princípio, com os estudos do inglês antigo e do islandês. 
Maria Kodama era de origem japonesa e, durante certo tempo, Borges passou a aprender também o japonês.
Muitas vezes afirmou que tinha convicção de que seu destino era o de ser escritor, mas não esperava ser conhecido: “No fundo, queria ser um escritor obscuro, quase imperceptível”.

Afirmava frequentemente o seu ateísmo. Admirava o pai, também ateu, e revelava que a felicidade mesmo só conseguia indiretamente, pelo trabalho.




Um ser solitário

Solitário Borges. Falava da solidão como de uma aliada às avessas de sua criação, espécie de segunda companheira, sombra sempre em volta dos livros acumulados sobre a mesa, empilhados nas estantes: “Passo boa parte do meu tempo só, conheço poucas pessoas. Então fico planejando poemas, narrações, para ditá-los a Kodama no dia seguinte ou à noite, ou a qualquer hora”.


Consagração

A consagração de Borges só veio em 1935, depois da publicação de seu primeiro livro de contos História universal da infâmia.
O universo fantástico das narrativas, porém, viria a ser inaugurado mais tarde, a partir do volume Ficções, ­alcançando alta voltagem em O Aleph
Para Borges, esses dois livros eram os mais importantes de sua bibliografia.
Com o passar dos anos, quando a cegueira se fez completa, a mãe Leonor passou a tomar conta do escritor, lendo para ele e escrevendo o que ele ditava. 
Em 1967, Borges casou-se com uma amiga de infância, Elsa Milan, mas o casamento não durou muito.
Leonor morreu em 1975. 
O ­escritor ainda conseguiu publicar alguns livros, ajudado por amigos.
Sentindo a ausência da mãe, Borges revela que, embora nunca tivesse pensado nisso, Leonor fora quem pacientemente, quieta e ­efetivamente, promovera sua carreira literária. 

Kodama tornou-se sua secretária particular em 1981. Casaram em 1986, no Paraguai, pouco antes de o escritor morrer de câncer no fígado.
Muitas vezes foi acusado de intelectual de direita. Mas ligava pouco para isso. Dizia que era anarquista, um homem que não tinha nada a ver com a política. “Não conheço nenhum político, não sou filiado a nenhum partido, sou teoricamente anarquista – o máximo para o indivíduo, o mínimo de governo – , mas isso é quase impossível”, defendia.
Mesmo sob a mais completa cegueira, Borges em muitos momentos foi profético, como quando comentou – durante o governo Alfonsin – a prisão e o julgamento dos militares torturadores argentinos responsáveis pelo desaparecimento de milhares de civis: “No que se crê é que vá haver sentenças severas, e depois de algum tempo uma espécie de anistia para esses homens. Então tudo não passará de uma farsa”.
Cinco meses antes da morte de Borges, Maria Kodama concedeu entrevista à Gazeta del Libro, de Madri, falando das constantes viagens que vinha fazendo com o escritor pelo mundo. Segundo ela, Borges demonstrava estar melhor do que nunca, divertido e entusiasta, sem parar muito tempo em um só lugar.



Epitáfio de um felino

“Aqui sob os epitáfios e as cruzes não há quase nada. Aqui não estarei eu. Estarão meu cabelo e minhas unhas, que não saberão que o resto morreu, e seguirão crescendo e serão pó” (J. L. Borges)

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Jolene: a pérola de Dolly Parton