O bom-gostismo é uma m#Rd@

Por Marina Marta


A morte do cantor-compositor Reginaldo Rossi – e a boa referência que o pensamento intelectual de esquerda e de direita resolveu finalmente manifestar sobre ele, sempre com ressalvas – me fez recuperar no baú de coisas esquecidas este texto de um de meus pseudônimos, a iconoclasta Marina Marta, que escrevia artigos imponderáveis sobre literatura, música e artes plásticas no século passado (rsrsrs), para páginas do caderno de Cultura do jornal O Liberal, o veículo impresso de maior circulação na Amazônia (até hoje).

Durante algum tempo, mesmo na Redação do jornal, muita gente achou que era realmente uma mulher louca que escrevia, às vezes de modo "desbocado" (tanto quanto possível para aqueles idos), aqueles apanhados de opiniões críticas um tanto conflitantes com as do establishment cultural da época.



Agnaldo Rayol e Erika Rodrigues no Programa do Jô: uma voz especial para um repertório nem tanto


Uma tarde morna, um sol ­dolente se escondendo por detrás do Pão de Açúcar. Eu ­caminhava sem rumo por algumas vias estreitas de Niterói e parei a certa altura num boteco de esquina para tomar (pasmem!) refrigerantes!
A TV estava ligada no programa de sábado do Raul Gil. Era outubro de 2001. Um jovem de cabelos louros pintados, com jeito de anjo barroco, ia começar a cantar. Eu já me preparava para assistir, entediada, a mais um daqueles candidatos pelamordedeus, quando, de repente, ecoa por sobre a minha incredulidade uma das mais belas vozes que já ouvi, um intérprete ­chamado Robinson, que meses depois iria vender quase um milhão de cópias de seu primeiro CD, de repertório muiiito discutível para o tamanho de seu talento. (Ele é evangélico e hoje, ao que parece, só canta música gospel e fala de Deus como se tomasse toda tarde café com o Altíssimo. Não sei se o repertório melhorou, mas a voz continua impressionante.)
Eu não pude me demorar mais e saí apressada do bar, mas levei comigo, ao longo do caminho até o hotel, a impressão de ter assistido a um prodígio. Julguei, porém, que se tratava de um caso fortuito, um golpe de sorte, afinal se tratava do Raul Gil! Dali pra frente, esqueci o ­evento. 

Duas semanas depois de retornar a Brasília, chego em casa e meu sogro está assistindo ao programa do Raul. Uma loira de aparelho nos dentes, um tanto desengonçada, razoavelmente bonita, vai começar a cantar. Raul anuncia Com vocês, Erika Rodrigues! e aguardo com certa apreensão o que vai acontecer.
Confesso que poucas vezes presenciei tal conjugação de suavidade e potência em uma única voz. A afinação, porém, aqui e ali ainda vacilava (o que era compreensível, ela estava num concurso de calouros) e a expressão corporal parecia a de um ser de outro planeta. Mas ela estava ali: Erika, de Diadema, 22 anos, que já tivera síndrome de pânico, naquele momento desempregada, com uma roupa horrível e uma p* voz. Três meses e meio depois, ela gravou seu primeiro CD (também de repertório marciano, uma tragédia). 
Pensei ­naquele momento que os produtores de música comercial deste país devem ter cabeça de ­vento: como é que se estragava assim um talento daqueles?
Naquele dia, passei o restante da tarde assistindo ao Raul Gil, surpreendida com a qualidade vocal ­daquela gente humilde que chegava ao programa sem tostão no bolso e rejeitava, em nome do sonho de se ­tornar artista, R$20 mil, R$50 mil, R$150 mil e dois carros zero quilômetro (para deixar o programa).
Eu nunca assistia ao Raul Gil. Os programas de entretenimento da televisão brasileira ou me ­entendiavam ou me irritavam, mas sempre fui amante incondicional de grandes intérpretes. As pequenas vozes que faziam sucesso no Brasil de então me levaram a, por vários anos, ouvir somente ópera. Isso se tornou tão determinante que, um belo dia, percebi que há anos não ouvia mais espontaneamente MPB.

E de uma hora para outra, estava a tarde inteira a ouvir no Raul Gil uma meninota arredia e tímida, mais desengonçada do que a Erika, e ainda mais perdida, apresentar uma garganta que era um balaço: Larissa, e uma jovem de Brasília, Bianca Toledo, que além de suavidade de interpretação, aliava ao ­talento um gosto musical digno de nota (já havia cantado Luiz Vieira e bossa nova com tempero de blues). 
Durante uma complicada gravidez, Bianca sofreu uma seticemia, passou 52 dias em coma, sofreu oito cirurgias e dezenas de transfusões de sangue. Ficou às portas da ­morte. Soube que ainda se recupera lentamente, e vem buscando manter a qualidade da voz. 
Também evangélica, está mais magra e mais bela, e dá hoje testemunhos do milagre que foi a sua recuperação. Eu também acredito em milagres.


Bom-gostismo

E aqui entra o que realmente me motivou a escrever estas linhas. Quase tudo o que li naquela época na grande mídia sobre aqueles jovens revelava um preconceito assustador. Os nossos formadores de opinião padeciam – ainda padecem – da síndrome do bom-gostismo.
O bom-gostismo impede que se veja além do que uma certa consciê­ncia crítica deformada diz que é genial. Um exemplo infeliz, mas real: João Gilberto é magnífico. Quem disser o contrário é uma besta. Aí, com o referendo de muita gente com informação exponencial sobre música, fica fácil dizer que é genial o que é realmente muito bom no João Gilberto, no Tom Jobim, no Chico Buarque. Mas só tem coragem de dizer que o Roberto Carlos é genial quem também é ­genial ou tem muita, muita perso­nalidade – e compreende as relações dúbias e fascinantes entre arte, popularidade e mercado.

O bom-gostismo, preconceituoso, arrogante e fascista, impede que se diga isso com todas as letras. Pega mal a quem tem “reputação intelectual” dizer que é muito bom um cara que faz música para baixinhas, gordinhas, mulheres de óculos. Mas a Nana Caymi, uma intérprete refinada, diz que o Rei é genial, "apesar de tudo". Ela, o Caetano e aquela turma ex-tra-or-di-ná-ria dos Titãs, todos muito refinados, mas acima de tudo profissio­nais, ­sabem o ­quanto é difícil fazer sucesso ­neste país de fracassos. Nana diz que às vezes lamenta os escorregões no repertório do Rei, mas respeita as opções do cantor-compositor: “Ele sabe o que está fazendo. Em time que está ganhando não se mexe”.
Os Mamonas Assassinas eram bons, mas nenhuma grande cabeça disse isso no momento certo. ­Lembro que o Arnaldo Jabor só admitiu que era bom o que eles faziam (mesmo com as limitações deles como instrumentistas) depois que os caras explodiram naquele avião e viraram pó. E olha que o Jabor tem bom ­gosto, é um esteta polêmico, mas sem bom-gostismos. 
As observações maldosamente negativas a respeito de gente que tem ­só o talento e trabalha com dificuldade cabem em discussões de mesa de bar. Mas se alguém ­escreve para um grande veículo deve ter responsabilidade com ­aquilo que diz. E não pode se limitar a exteriorizar “impressões” nem tomar como referência para uma análise crítica só o gosto pessoal, o tal do bom-gostismo, que reveste o preconceito mascarado.
Ataque-se o repertório pouco inspirado que um mercado selvagem a eles impõe (discutível sim, precário mais ainda), mas ao mesmo tempo diga-se que esses jovens têm ­talento. Se não se fizer isso, a crítica deixará de ser isenta e passará a ser preconceituosa e estúpida, como tem sido até hoje.



Preparo e cultura

Precisam os novos talentos, em sua maioria, de algo que não lhes foi dado, por ser este um país de sombras: formação, preparo e cultura. E de gente que tenha coragem de patrociná-los, educá-los e apoiá-los sobretudo em função do que podem se tornar artisticamente.
Sabe aquela menina de que falei, a Erika? Pois é só entrar no Youtube e acessar seus últimos vídeos (de shows muito bem produzidos, o repertório ainda um horror), e compará-los com os da desengonçada caloura do Raul Gil de 2001. É outra pessoa, e melhor, muito melhor, artista. Ainda há que evoluir, porque só dom, desejo e inspiração não bastam. Mas se deve reconhecer que há pouquíssimas como ela, tocadas por esses anjos transformadores que se chamam potência, capacidade e talento. 

Após o convívio principalmente com o cantor Agnaldo Rayol, que decidiu apoiá-la, impressionado com a qualidade vocal que ela apresenta (ele fez com ela um dueto a seu modo interessante, v. o vídeo), a moça passou a estudar música e canto, deu uma repaginada no ­visual – porque afinal de contas algumas doses de beleza não embriagam –, mas falta ainda o repertório que a torne realmente supernova, ainda que na linha kitsh que ela representa. 
Ela está nessa busca, é o que sei, ainda que perdida, agora a cantar música sertaneja.

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