A graça é ainda mais bela que a beleza




















E que é a graça? É tudo.
É, em primeiro lugar, a inteligência.
Que vale a formosura plástica, quando é a companheira da estupidez?
E a inteligência não dá apenas às mulheres uma beleza moral: dá-lhes também uma certa beleza física.
(Olavo Bilac)




A beleza é o que é. Nada mais inútil que o tentar conceituá-la. O belo é sempre uma inapreensão, um eterno escape, uma viagem ao fundo profundo – e profuso – das impossibilidades humanas.

Quanto mais a querem submeter, mais a beleza escapa das mãos que a julgavam submissa.

A beleza e o belo apenas existem.

Através dos séculos, homens em legiões vêm tentando codificar o belo. Os incautos contam-se aos milhares. Mas já há os que se convenceram definitivamente do sem-fim dessa tarefa, pois não existiu sábia alma ou especial sensibilidade que não tenha tentado conceituá-la – sempre insatisfatoriamente.

O belo não cabe nos limites do homem, não se deixa reduzir a um esquema, a um sistema.

É fluidez, convicção íntima, subjetividade.

O poeta Paul Valéry, apequenando-se diante da incapacidade de conceituar a beleza, afirmou que o belo “é aquilo que desespera”. Platão afirmava que o belo era “o esplendor da verdade”. Mas ficava um outro enigma: o que é a verdade?

E a beleza assim explicada gerava outra frustração.

"O pensamento contemporâneo mostrou ser impossível reduzir as várias manifestações da beleza a um sistema. O relativismo, mais uma vez vencedor, derrubou por terra a concepção autoritária do belo, acabando com a antiga pretensão de se encerrar sua multiplicidade em um único ideal. É o fim de todos os dogmatismos”, afirmou um editorial de ­revista, acertadamente.

Há muito se abandonou a ideia de “perfeição” ou "completude" como parâmetro do belo.

Um busto inacabado de Nefertiti em quartzita rosa no Museu do Cairo mostra que o tempo regenera a dinâmica do belo.

Aquele rosto apenas esboçado, de lábios pintados, exerce fascínio maior que o da Nefertiti policromada – e em perfeito estado – do Museu de Berlim.

Talvez mero ensaio de escultor, a Nefertiti em quartzita prenuncia que apesar de a beleza já se encontrar esfuziante no busto inacabado, mais beleza ainda há em estado de potência.

É sempre uma possibilidade, um jogo. A sedução e o fascínio da beleza latente.

“À semelhança de algumas teologias, há também estéticas negativas, nas quais a beleza se manifesta pela ausência. Não surpreende em nada que a cabeça inacabada de Nefertiti tenha-se transformado num ídolo de uma modernidade que prefere a escritura à escrita, o fragmento ao poema”, afirmou a ensaísta egípcia Ayyam Wassef.

Algumas obras da modernidade rejeitam deliberadamente a ideia de perfeição, de acabamento, sob o argumento de que assim se torna possível apresentar e representar de forma universal a beleza de tudo quanto existe (embora sob esse pretexto se chegue muitas vezes à irresponsabilidade, aliada do oportunismo).

A ­impossibilidade de apreender a beleza “confirma sua onipresença e revela sua unidade”. Sempre arredia às mais bem-intencionadas e complexas análises intelectuais, sempre diversa e, por isso mesmo una, a beleza mais e mais se aproxima da experiência sensível.

Sabe-se apenas que existe um sentido universal do belo, que ­nasce, morre e renasce no espírito dos homens.

Mas para encerrar esta conversa acerca desse algo-inútil, podemos ir ao encontro de Olavo Bilac, que em “A Beleza e a Graça” adiantou a respeito do belo feminino:


“[...] deixemos o belo em absoluto e cuidemos do tema especial da Conferência: a beleza humana, ou mais restritamente a beleza feminina, que é, e sempre foi, e sempre há de ser a inspiração, a tentação, a perdição, a salvação, o bem, o mal, a virtude, o vício o encanto e o desespero dos homens. A beleza feminina existe, e tem uma influência soberana. Mas que é ela? A ideia da formosura da mulher varia infinitamente de raça para raça, e de homem para homem. Ao velho Aristóteles perguntaram um dia: Que é a beleza?; e ele respondeu: Só um cego pode fazer essa pergunta! Parece realmente que basta não ser cego para saber o que é a beleza. Mas nem todos a veem do mesmo modo. Mirabeau disse que a concepção da beleza feminina está sujeita aos caprichos do sentido, do clima, da opinião individual.

A beleza é criada pelo amor e cada tipo de homem tem seu tipo de beleza, que é a mulher a quem ama. Por isso Voltaire, quando lhe pediram que definisse o belo, disse, com muita graça e com muita razão: le beau pour le crapaud, c’est sa crapaud! (o belo para o sapo, o sapo é!).

A verdadeira beleza, senhoras que me ouvis, é a vossa: é a graça; a graça, de que o velho La Fontaine já dizia: et la gracê, plus belle encore que la beauté (a graça é mais bela ainda que a beleza); a graça, que zomba de todas as regras da dimensão e da proporção; a graça, que não tem idade e não conhece leis; a graça, que transforma defeitos em qualidades e as incorreções em perfeições. Naquela luta dos sentimentos que me avassalavam no Louvre, quando hesitava entre a contemplação da Vênus de Milo e a de duas visitantes, o que realmente havia era o conflito entre o mármore e a vida, a guerra de competência entre a beleza e a graça...

E que é a graça? É tudo.

É, em primeiro lugar, a inteligência. Que vale a formosura plástica, quando é a companheira da estupidez? E a inteligência não dá apenas às mulheres uma beleza moral: dá-lhes também uma certa beleza física. [...]

Mas a graça também é a bondade, a doçura, a ternura, a comoção. [...]

A graça é ainda voz.

A graça é ainda o olhar. Há olhares que saem, lindos, de feios olhos, como há lírios alvíssimos que rebentam de pântanos escuros. O olhar, que é a voz muda da inteligência e da piedade, dá às vezes à mais feia e disforme das faces humanas uma beleza imaterial e divina. E não é sem razão que de todos os feitiços femininos é o feitiço do olhar o que mais comumente inspira a poesia lírica – erudita ou popular.

Abri qualquer dicionário – e cotejai a miséria da palavra beleza com a opulência sinonímica da palavra graça.

Beleza é do que é belo e do que causa admiração. E Graça? Graça é atrativo, é sedução, é benevolência, é favor, é mercê, é perdão, é comutação de pena, é elegância, é gracejo, é riso, é alegria, é dom sobrenatural como meio de salvação ou santificação. É privação, é boa aceitação, é agradecimento, é benefício, material ou espiritual, é delicadeza, é finura, é sutileza, é inteligência, é espírito, é tudo o que há de afável e carinhoso... E lembrai-vos, minhas senhoras e meus senhores, que quando vos dirigis à supermulher em que os criadores do poema católico simbolizaram a extrema pureza e a extrema misericórdia, não lhe dizeis: Ave-Maria, cheia de beleza!, porém: Ave-Maria, cheia de graça!”

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