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Mostrando postagens de 2019

Mitos

Estive a pensar em como foram criadas essas figuras híbridas dos mitos, seres que são metade anjos e metade bichos; um pedaço de mulher com mãos de tigre, as garras dum felino num corpo que tem peitos, e com uma voz que é feita só de gritos ou urros... ou bramidos. Fico a pensar que seus olhos de cristal (ou puro vidro) talvez não sejam assim tão abissais como faz crer seu rosto repleto de sentidos que desconhecemos. Um dia chegará a hora de enfrentar as asas que tememos nessas coisas que voam sobre nós nas noites de sereno. Ao ouvir o som de seu galope, saberemos. Mas o quê? O que faremos ao nos atingir o impulso dessa harpia furiosa, a letalidade de sua língua eivada de veneno?

Depois

Depois do amor, quando cessaram todos os perigos e aquela flor feita de vespas passou a zumbir no meu ouvido o seu canto nada sedutor, ouvi o teu pedido de perdão cheio de citações de autores vivos. Eu não quero mais saber das tuas aspas a me devolver aquilo que não digo, a me dizer tais frases que eu não lia. Tiraste-me da casa em plena noite e ainda por cima mataste-me o cão com cujos dentes eu sempre te mordia. O que falavas é uma fala de açoites: “Eu não te amo, o que fazer? Perdoa-me este momento irrefletido de paixão”. E novamente em luto eu disse não a esse amor que falece enquanto luto com todas as forças que não tenho, a desterrar a ilusão, embora doa em mim. Mas não acreditas na linha frouxa e fraca desse meu desenho de dúbios sinais, na minha fala simplesmente rouca de tanto mentir até a vontade perecer, até que o orgulho cale a minha boca, até que tudo que fere volte a me ferir. É tão desolador estar assim, à merce desse carinho roto que não tens por mim nem por ninguém. Se

Tigre

Eu sempre quis domesticar um tigre pequenino, um felino ainda bebê, com garras tais como se fossem espinhos de delicadas flores. A ele alimentaria com um leite entre morno e quente, um leite grave, até que suas listas vagamente amareladas ganhassem o rotundo negro que os faz (aos tigres) temíveis nas florestas, assim como a portentosa juba transfigura os leões, estes seres quase femininos, no terror insuperável das savanas. Ele cresceria até o limite de suas forças, até ficar um animal urgente, capaz de devorar um ser humano apenas com o susto das mandíbulas de aço, até que seus fios de prata, o ouro de suas vestes (o cobre apenas lhe reveste a máscara dos dentes), a beleza feita de intensidade e músculos, assemelhada à de certas mulheres e à de raríssimos cavalos, nos deixassem um só amontoado de dor e fibras pelo pátio, o corpo e a alma inteiros, mas feitos em pedaços.

Guarda-chuva

Sobre nós as cerejeiras se abrem como um guarda-chuva de lágrimas amarelas. Mesmo que abrase o sol fora desse casulo de flores, ali embaixo, no túnel em que se espera o desabrochar das cerejas, a brisa amena varre os cabelos e abraça-nos com suavidade. É importante ficar ali, a descansar um pouco do que há lá fora, no meio do asfalto, sob os edifícios e além, no alto céu, onde uma cortina de fumaça evoca o apocalipse. É imprescindível estar sob o manto das cerejeiras, sob seu vestido amarelo de festas feito especialmente para um noivo. É fundamental aspirar o perfume das cerejas, ainda que elas não estejam lá e haja apenas flores, a brisa e nós, somente nós, o que é uma forma certo modo simples – e surpreendente – de aproveitar a vida.

El olor exhausto de velas

La mañana apenas había llegado y todos estaban tristes. Durante la madrugada lloró bajito. Sólo se oyó el leve sonido de un alma gimiendo. En todo el aire se respiraba el olor exhausto de velas. Un perfume aceitoso de flores impregnaba la sala invadía el cuarto abierto donde la pequeña hija lloraba. Sobre la mesa estaba el muerto. Fuera simple, fuera hermoso, hasta que un ala sombría lo alcanzó como un sable. Ella todavía no creía: las niñas ahora sin padre, el marido asesinado. Cortara más que a él aquel golpe de navaja. El filo la dejó en pedazos. Si fuera piedra, un astillero la habría destrozado. Habría implosionado enteramente si fuera otra arma, un fusil, una escopeta. Ahora estaba sola, ningún ángel descendía de los montes para consolarla. Había aquel viento helado que soplaba dentro del alma. El invierno era un monstruo  que retrasaba su llegada. Se movía a toda la casa en una infinidad de rezos. La vida de Leonarda fuera de pasión y locuras. Mujer, madre, ama

Paisagem

O cenário ao pé desta montanha é a paisagem de um conto de horror. Está caída a vegetação, um puma ao longe espreita seja lá o que for à luz pálida da Lua, enquanto a flor no vaso a um canto desfalece. Uma neblina áspera e fulva cobre o vale onde não se ouve mais nenhuma prece. Também em nossa alma às vezes semelhante paisagem desce com a fumaça de todo o seu pavor. Esconde-se na sombra dessa hora baça, na fraca luz de sua cortina enevoada, em sua pele que se sabe nua, certa amargura que jamais se esquece (e ainda a mágoa, o desalento e o rancor). Mas eis que de repente a aurora nasce. Tudo o que era luto pronto se desfaz. A casa de fantasmas era só uma choupana deixada há tempos pelos ancestrais. Aquele velho tronco decerto não é um puma, nem mesmo a aparição da mais remota fera. Do mesmo modo que a luz do Sol revela a nós que nossos medos são banais, a alma em pranto também se regenera logo que tocada pelo amor e seus sinais, assim que a esperança assume o leme deste barco em fuga –

Ciúme

Eu estive aqui na madrugada em que os moradores desapareceram. A casa ficou vazia, os vasos de plantas foram atirados no chão do pátio. Tapetes mancharam-se de vinho verde, janelas ficaram aos pedaços e todas as paredes, antes pintadas de amarelo-cobalto, tingiram-se de um vermelho vivo que se assemelhava à pigmentação do ciúme. Quando chegaram os homens e as mulheres da perícia, acharam fotografias rasgadas na lixeira da sala, respingos de poemas pelo chão do quarto, três ou quatro retratos arrancados das molduras. A legista falou sem hesitar que tudo ali estava morto, mas não de crime premeditado, se é que em casos como aquele um crime houvera, se não fora apenas o áspero cenário de uma fuga. Tudo dizia que um erro de cálculo, um equívoco, um acidente gestado pela cortina do silêncio deixara esfumaçado o ambiente, e que alguma coisa já gritava, rouca de não se fazer ouvir (com todo aquele barulho pela casa). De tanto que não se podia ver, o tiro fora dado num intenso escuro, inteiram

Dilema

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O amor, esse dilema que desparafusa, desgasta. Vem, descansa esse corpo na aba mortal do meu ombro, que o mundo hesita, balança. Não que girasse antes sempre contínuo e constante, como estável monolito. Sempre seguiu aos tropeços, entre a alegria e a vingança, entre o silêncio e o grito. Mas eis que agora está torto, muito mais torto que outrora. O mundo hesita, balança. Fora marcado no berço com explosões a cada hora. E uma vez que esfriou, não sabe o que fazer por ora com os incêndios que criou. Tal como os amores que um dia ao cair a tarde fria, não entendem o que o fogo apagou. Sep 15th, 2019

Seguidilla

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Sobre las piedras de este río cepillo tu pelo mojado. De los árboles, ciertos pájaros nos observan callados, celosos de nuestro oficio. En la orilla del río, niña, hay flores llenas de rocío. No hay nada como tu con tu brillo delicado, tu olor de romero, de vainilla, tus brazos de mariposa. Sobre los troncos del bosque, bailamos la Seguidilla, giramos en la rueda, sacamos en la flauta una cancioncita. En un carrusel de mujeres giran en el aire madre e hija.

Otoño

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Esto de ser madre es una navaja. Desde el vientre nos atravesa el cuerpo esa espada de fuego, escarlata como un corazón que no para de doler. La vida toda ese temblor de quien teme el susto, el duelo, la sombra de lo que desaconseja. Mucho cuidado, hija: los dolores, las fiebres del mundo a veces nos alcanzan sin piedad. Es prudente protegerse del frío, del calor, de las ilusiones del otoño, porque el amor es siempre esa hoja caída, árbol que se desmonta. Mucho cuidado, hija...

Aço

Eu trouxe a morte diante de mim, tão perto de ti quanto podia, até o gemer do aço temperado dessa espada fria, a fria lâmina de todas as desditas dos sedentos deste poço que esvazia a água de seu próprio rosto. Eu trouxe a morte; eu vivo a morte como quem devora a última comida cheia de fumaça e ri no topo de uma escada em espirais de veneno (um veneno que devasta) tomado da verde alegoria que enfeita o carro dos mortais que um dia vestiram aquela fantasia. A morte, primeiro antepasto que eu comia a olhar o oceano vasto onde me afogaria é mãe do horror e filha da desgraça. Eu deixo a vela, a vela desse funeral embaixo da janela porque não posso mais e tudo passa. Soprada pelo vento, onde está ela? Onde estarás? Talvez entre os umbrais. Quem sabe esteja na taverna, em que a última cerveja foi servida a Barrabás, enquanto aquela outra, encharcada de vinho, espera e não sabe o que faz. Eu sei a morte, a morte foi meu ninho. Tu só depois de morto a sa

Razão e sensibilidade

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Os tempos atuais, de vida acelerada, de mensagens por dispositivos móveis, provoca a necessidade de comunicação cada vez mais reta e breve. A escrita precisa então de períodos mais curtos. A inversão de elementos na frase, tão cara a tempos pretéritos (em que soava como qualidade de estilo), dá lugar à predominância da ordem direta, principalmente no jornalismo. Diz a influencer Dad Squarisi em seu Blog:  “Na frente, o mais significativo. Atrás, o secundário. Sujeito + verbo + complemento é a fórmula. Bolsonaro elogiou o filho na entrevista de ontem no Palácio do Planalto. A ideia substantiva — Bolsonaro elogiou o filho — abre o enunciado. É ela que ficará retida na memória. O complemento tem importância secundária. Se algum pormenor se perder, não comprometerá o recado. Compare: Na entrevista de ontem no Palácio do Planalto, Bolsonaro elogiou o filho. A informação mais importante perdeu-se na rabeira da frase. Azar do leitor”. * As diferenças de estilo não se prend