Ademir Braz – um poeta da Amazônia


Ademir Braz possui a biografia de um intelectual de cidade do interior, inóspita, entrecortada de rios, décadas atrás perigosíssima. De lá, ele não se afasta para se fixar em outras plagas nem amarrado.
Isso faz sentido para a semântica de sua criação, impregnada de uma certa melancolia, uma tal desesperança quase profunda, mas que paradoxalmente aspira a ser feliz; uma identidade índia que não se aparta da natureza, de seus rios, pássaros e mitos, da terra ainda espoliada.
Ele é uma voz poética amazônida rara e autêntica.



Conheci-o há 30 anos, numa viagem ao Sul do Pará. Mas meu contato se deu primeiramente com a poesia desse marabaense, algo por acaso. Numa certa manhã de calor asfixiante em Belém, ainda adolescente, vi Branca chegar da editora trazendo nos braços algumas sobras de papel e exemplares defeituosos de livros que estavam sendo impressos. Por curiosidade, fui abrindo os livros um a um: um certo O canto do acauã, sobre o cangaceiro Lampeão; algumas Cartas de Paris; uns tomos de leis e um miolo sem capa de... Ademir Braz, com um longo e belo prefácio do jornalista Lúcio Flávio Pinto. Li-o como faço até hoje, com certa precaução, achando que prefácios são quase sempre levianos ou enganosos. Mas ao chegar aos textos, mais precisamente aos poemas, fui tomado de uma real comoção que raramente me afeta diante de qualquer literatura. Ali estava um poeta amazônida verdadeiro, no sentido de que tudo o que ele cantava impregnava-se de uma espécie de convulsão, desalento e despedida que só quem vivia com plena consciência as vicissitudes daquela região bela e brutal seria capaz de manifestar. Marabá, a cidade onde ele nasceu e onde vive, era então uma região violentíssima, marcada por uma política de exploração indiscriminada da terra, retaliações, embates, trocas de tiros. E ele ali, sereno e lúcido, criando sua poesia de resistência, como faz até hoje. Vamos a ela:


Voo Noturno


Patos selvagens!
Dentro da noite minha infância
Vadeia as trevas
No grito selvagem dos marrecos.
– “É chuva, meu filho, é água grande;
quando o marreco voa e canta pela noite,
o rio desassossega e vem cantar também”.
E minha mãe conclamava seus santos,
a legião de seus santos,
pra nos proteger da breve enchente.
Eu era menino 
e a madrugada um silêncio dourado,
longínquo.

Minha mãe rezava e os santos
lhe punham flores no cabelo.
Há tanto tempo...
Agora os patos cantam. Serão os mesmos?
Passam velozes, ocultos.
Tento vê-los e um bando de saudades
olha o céu comigo.
Ouço esse canto, mas faz escuro
e não posso vê-los.
Eles vão longe, alto, longe,
minha infância erra pela noite afora, 
e nesta madrugada de repente triste
pia o triste pato: o coração selvagem.


Futuro

A don’Ana, a mãe

Repara bem neste verde, filho. Atenta
Para o mistério desse cantar de pássaros
inúmeros
Procura ouvir
o sussurro mágico dessas
fontes, desses
córregos, desses
fios dágua tão pura e fria.

Repara bem neste verde, filho. Guarda-o
na tua memória. Um dia,
quando eu for semente
que não dá mais frutos,
e os filhos de teu sêmen
perguntarem a ti sobre
símbolos perdidos
(Iara peixe-boi cobra-norato
açaizeiros castanhais e flores)
e nada mais houver senão o 
deserto imenso e nu desta Amazônia,
fala-lhes do verde, das plumas
dessas árvores irreais, desses
fantasmas de bronze que um tempo
se confundiam na sombra dos arvoredos
e se chamavam xavantes xicrins
parakanans, pássaros inúteis.


Pássaro Possível


Da janela
acompanho o voo do pássaro.

Distante!...

Lembra os sonhos que tive
antes, muito antes.

Pudesse, faria
uma canção a respeito
de pássaros voando no dia
lá na curva do horizonte,
lá por detrás dos montes!...

Mas vivo tempo de senões
de resistências
só posso cantar os pássaros
presos
os círios acesos
no escuro
e o protesto escrito
no muro.

Da janela 
acompanho o voo suave
da ave no céu deserto
ser também queria
– serei, algum dia? –
um pássaro liberto.


Beta posseira

À Beta PA-79 e ao feixe de sua angústia

Pardal voou contra o vento,
a luz colheu-o na teia;
ficou um traço miúdo
no corpo ardente d’areia.

O passarinho galante
constrói seu ninho na mata;
e lá, no meio das folhas,
seu canto claro desata.

(E tu, menina posseira,
presta atenção neste fato:
que um dia não haverá

nem passarinho nem mato).



Ademir Braz é escritor e jornalista de Marabá, cidade do Sul do Pará. É também advogado, infelizmente. Ninguém é perfeito.
Iniciou-se no jornalismo em 1972, em A Província do Pará, um jornal da capital paraense que integrava o grupo dos Diários Associados há priscas eras. Quando saí de Belém, há 20 anos, esse jornal emotivo era já escombros. Não sei como está agora.
Publicou Esta terra (Belém: Neo­gráfica, 1981); Antologia Tocantina (Marabá: Fundação Casa da Cultura de Marabá, 1998); e Rebanho de pedras (Projeto Usimar Cultural 2003), todos dominantemente livros de poemas.

Integra várias antologias, entre elas a Poesia do Grão-Pará, orga­nizada por Olga Savary (Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2001).

Recebeu o Prêmio Buiúna 1999, conferido pela Associação dos Artistas Plásticos de Marabá e Secretaria Municipal de Educação, como destaque da cultura marabaense.
É, logo se vê, a biografia de um intelectual de repercussão injustamente restrita, enclausurado por opção numa cidade do interior. E só digo isto, ressalto esse fato, não por indigno, mas porque, neste caso, faz todo sentido – um sentido positivo – para analisar a criação dele, impregnada, como disse, de uma certa melancolia, uma tal desesperança quase insuperável, mas que paradoxalmente aspira a ser feliz; uma identidade índia que não se fasta da natureza e de seus rios, pássaros e mitos, de sua terra ainda espoliada; uma voz poética amazônida rara e autêntica.
Deixemos a poesia desentranhada e ínsipida que nada tem a dizer, espalhada nas estantes novas, mas boloradas, que vemos pela ­frente, obra de uma gente boçal, refém da simbologia inútil, neoparnasianos de nada, estofados de hermetismo. Tenhamos a coragem de ler poetas com a dicção legítima e mortal das coisas verdadeiramente humanas que devem ser bem ditas: o ­desterro, o trauma, o chão batido, o rio oleoso, os pássaros feridos, os maus sem escrúpulos, os peixes mortos, os répteis ressequidos. Aí, nessa zona de profundo desconforto em que deparamos o horror de nossa espécie, estará Ademir Braz, dizendo das coisas que ele vive, do mal que disseminamos sobre a terra, da terra que desamamos, das águas que poluímos, dos amores que deixamos mortos no solo asfixiado.
Tal como ele, muitos há, artistas verdadeiros, que se recolhem às marabás de suas origens, tímidos, desarticulados das estratégias promocionais, isentos das vaidades que erigem mortos à condição de vivos e criam ícones de vento.
Só que nós precisamos olhá-los, os que queremos o caule e a seiva; os que buscamos as autenticidades e o valor das coisas que valem. Nessas profundezas, veremos um poeta que fala de sua terra, a Amazônia de todos, com luz de lampião e candeeiro, dono de uma técnica de criação poética invulgar, mas principalmente alguém que fala de embarcação não como se navegasse, mas como se fosse a própria canoa e o velame dos barcos; não como se voasse, mas como se fosse a própria pena das aves e o bico esplêndido que atravessa as nuvens.
Mas essa poética (no sentido de ser ação e produção ao mesmo tempo em que é deleite) só é possível porque Ademir Braz vive a contradição de ter mente sã e olhar consciente em terra hostil; de conter apurada linguagem em espaço de dureza; de ser o caboclo que degusta o bom vinho e bebe o vinagre salobro dos rios, esteta índio de olhar civilizado, conhecedor ao mesmo tempo das asperezas do urucum e dos vernizes.




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