Athos Bulcão: gênio da cor – II



“Ele foi talvez o maior artista da história da arte brasileira, o mais generoso e o mais social. Sua arte era feita para a população, não era presa às salas, aos museus. Era para quem passava pela rua, mesmo as pessoas distraídas, que não percebiam que aquilo era arte. E são trabalhos lindos. Estou triste porque tinha uma relação longa com ele, desde os meus 7 anos, quando cheguei em Brasília. Éramos vizinhos. Guardo essa preciosidade comigo.” (Ana Miranda, escritora)



O painel externo do Teatro Nacional, em Brasília, é a obra de Athos Bulcão de maior destaque e reconhecimento. Sempre citada por críticos e historiadores, é para muitos o mais bem-acabado exemplo de fusão do pensamento arquitetônico com o artístico.
“A parede do Teatro Nacional é o marco da nossa história, é nossa grande pirâmide. Se penso num painel de arte no Brasil, a primeira coisa que me vem à cabeça é aquilo. É genial. E muita gente nem sabe que é do Athos. Está tão integrado com a arquitetura que as pessoas pensam que é do Oscar (Niemeyer). Nesse sentido, ele foi, de todos os artistas brasileiros, o mais fiel a esse espírito na arquitetura", resume Marcus Lontra, para quem Athos, de tão brasiliense, acabou ficando pouco conhecido fora de Brasília, por “uma opção talvez nem tão deliberada, mas insistentemente construída”.
Athos tornou-se um artista popular no sentido de haver construído uma obra pública. O crítico Agnaldo Farias condensou de modo revelador essa questão: 

“Se Brasília é o principal feito da arquitetura e do urbanismo modernos, a obra de Athos Bulcão, entre a de todos os nossos artistas modernos, foi aquela que mais explorou a relação entre esses dois polos da produção do espaço. Situada entre os artistas de linhagem construtiva ou concretista, aqueles cujo grande propósito era a fusão da arte com os processos industriais para que com isso ela escapasse da clausura dos museus e galerias, dissolvendo-se nos objetos e nos espaços íntimos e públicos, a obra de Athos Bulcão, curiosamente, não tem o mesmo reconhecimento de colegas menos bem-sucedidos. Isso, se deve, em parte, à notória discrição e elegância de Athos, para quem realizar sua obra era um ato tão natural quanto respirar. Mas o principal responsável por essa situação é mesmo a precariedade de um país que ainda não consegue construir e estabilizar a história de sua arte”.

O artista plástico Cildo Meireles, que passou a adolescência na Capital Federal, ficava impressionado com esse painel, que sempre contemplava com admiração confessa: “De certa maneira, o ­trabalho de Athos é o começo do meu interesse pela arte”.




O desenho até o fim


Pode-se dizer que do mesmo modo como começou pelo desenho, também foi pelo desenho que Athos fechou o ciclo de sua arte. No hospital Sarah Kubitschek, apesar de trêmulo, trazia ele sempre à mão um bloco de papel, os lápis de cor e as infalíveis canetinhas. Com o avanço da doença, o artista já não conseguia mais manipular as tintas, que o intoxicavam. Canetas coloridas e lápis de cor passaram a ser então seus instrumentos de criação. Ele espalhava pela mesa os estojos desses materiais e transformava a superfície do papel numa festa cromática em que despontavam peixes, rostos, janelas, máscaras, confetes, pierrôs e arlequins intensamente coloridos, nada porém muito realista ou fotográfico, apenas manchas, borrões, traços, sugestões de um certo azul, um abundante rosa, o laranja necessário, mas sempre com aquela visão de espaço e sentido de cor profundos.



Do Brasil e do mundo


A obra de Athos se espalhou por todo o País (Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife) e pela Europa (Itália e França). Mas é Brasília que certamente guarda o maior acervo de obras do artista, especialmente os painéis concebidos na linha criativa que une modernidade e tradição.
Era um artista fascinado por Brasília, pela luminosidade incomum que a cidade derrama em todo fim de tarde. O orgulho de ter participado da construção da capital o fez um aguerrido defensor dela. Se havia uma coisa que o irritava profundamente era a mistura que muitos deliberadamente faziam entre Brasília, seus habitantes e os políticos desonestos que para ela migram, vindos de todos os cantos do País, cristalizando o estigma de cidade-cenário do que há de pior no poder político nacional.



Em nome da convivência

Athos tinha a preocupação de tornar mais agradáveis os espaços de convivência. E fez isso levando sua arte sutil a elementos como divisórias, paredes e muros – para o lado de fora de museus e galerias: uma arte para todos. Agnaldo Farias evocou em artigo no Correio Braziliense: “Lembro-me de quando Athos confessou que nunca havia compreendido a brancura das paredes dos hospitais. E aí se pode entender por que seu amigo João Filgueiras Lima, o Lelé, adotando seu argumento sobre o caráter terapêutico das cores, convidou o artista a pensar as tonalidades cromáticas dos ambientes dos hospitais da rede Sarah Kubitschek. Esse momento, no começo dos anos 1980, significou uma segunda etapa da trajetória de Athos Bulcão, que, principiando pela coloração dos espaços fechados, passou a projetar biombos, entradas de prédios, paredes pivotantes mediante as quais as salas se abriam ao encontro da natureza. E não deixa de ser sintomático o fato de que Athos Bulcão, ao par dos magníficos murais e relevos que continuou realizando, tenha se empenhado no aperfeiçoamento de ambientes dedicados à cura”.
Athos Bulcão deixou em Brasília a sua obra íntima dos habitantes, mesmo daqueles que não percebem, até hoje, ao olhar para um certo revestimento, um certo azulejo, o caráter de arte excepcional. “Pensando bem, nem parece obra de um artista. Não vem acompanhada dos aparatos típicos das obras de arte. Pois Athos Bulcão obteve em vida o que poucos artistas ousam sonhar obter: que sua obra já não mais lhe pertencesse, que fosse tão comum e natural quanto os verdes, a planura e a extensão do céu da cidade que adotou para si”, concluiu.
Seu fascínio pela luz o fez optar por ter até seu apartamento, na 315 Sul, completamente branco – das paredes ao teto, passando pelo piso. Também a decoração era discreta, serena, sem afetação, à altura de seu senso estético e bom-gosto.
Havia algo de matemático e policrômico no modo como Athos enxergava o mundo, em especial espaços, ambientes e construções. Alguém chegou a classificá-lo como um criador que manifestava “um movimento pendular entre o rigor geométrico e a liberdade das cores e formas”.




Um artista da cor


Athos conseguia como poucos usar a cor em total correspondência com suas intenções de artista. Por isso raramente usava cores prontas, antes as construía de modo muito particular, específico: não era um azul, rosa ou vermelho qualquer, mas aquele azul, aquele vermelho, aquele rosa. Seu conhecimento da cor era tal que conseguia indentificar com precisão, nas obras de outros artistas, as misturas e tons que haviam utilizado. A respeito desse fenômeno, disse dele o pintor e amigo Ralph Gehre: “Ele chegava ao ateliê, olhava a pintura e sabia que tinta eu havia usado, como havia misturado aquele branco ou aquele azul”.

A jornalista Nahima Maciel arriscou uma análise da forma de criação de Athos, em matéria publicada em edição especial do Correio Braziliense
“O rigor das formas geométricas, calculadas segundo uma lógica matemática, andava de mãos dadas com os mascarados coloridos. Uma combinação precisa de retas e curvas ali, uma confusão de rostos e cores acolá. Athos Bulcão gostava dos dois mundos. Se reconhecia na terra iluminada de Apolo e sua beleza, na poesia e harmonia do deus grego das artes, da mesma maneira que reverenciava a festividade de Dionísio e sua devoção ao prazer. E, como não podia se separar dos opostos, Athos experimentava os dois. Na parceria com a arquitetura, primava pelo rigor geométrico. Nas máscaras, desenhos e pinturas, visitava Dionísio”. 

Máscaras e bichos


Sobre os bichos de durepóxi e as máscaras criadas por Athos em relevo com tinta acrílica, nos anos 1970, a jornalista escreve: 
“Athos se dedicou a moldar essas criaturinhas de um só olho, com rabinhos e pintadas com tinta acrílica, todas saídas de seu universo dionisíaco, muitas de aspecto surrealista. As máscaras são relevos, meio caminho entre a pintura e os objetos. A vontade de esculpir invadiu o artista e gerou estes seres ambivalentes, de face única, produzidos até o início dos anos 2000, quando o odor exalado pelos materiais começou a lhe perturbar o corpo já fragilizado pela doença”. 
Athos, diz o amigo Evandro Salles, era um apaixonado pelo teatro desde muito jovem, e também por todas as manifestações da dramaturgia, nas quais se inclui o Carnaval, o que fez com que surgissem na obra dele Pierrôs e Arlequins de maneira marcante. “As máscaras talvez tenham essa origem”.

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