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Um poema de Mário Faustino

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Volto aqui a um belo poema de Mário Faustino, um autor que em sua juventude conviveu com alguns de meus mais diletos mestres do campo da literatura em Belém do Pará. Faustino é um autor ainda hoje, sob muitos aspectos, incomparável, um dos maiores em língua portuguesa, embora com uma produção pequena, enxuta, talvez em razão de seu perfeitismo , uma virtude que o levou a escrever muito pouco (falo de poemas, claro). Ler um poema de Faustino nos joga no centro de uma questão necessária a quem escreve: a da natureza da poesia hoje, que oscila quase sempre entre um neoparnasianismo injustificável, um simplismo "em favor da comunicação" e um visualismo neoconcreto desanimador.  Os poemas de Faustino não são simples nem banais, porque produtos de uma "técnica literária" que em momento algum é bijuteria no poema . BALATETTA Por não ter esperança de beijá-lo Eu mesmo, ou de abraçá-lo, Ou contar-lhe do amor que me corrói O coração vassalo, Vai tu

Mitos

Estive a pensar em como foram criadas essas figuras híbridas dos mitos, seres que são metade anjos e metade bichos; um pedaço de mulher com mãos de tigre, as garras dum felino num corpo que tem peitos, e com uma voz que é feita só de gritos ou urros... ou bramidos. Fico a pensar que seus olhos de cristal (ou puro vidro) talvez não sejam assim tão abissais como faz crer seu rosto repleto de sentidos que desconhecemos. Um dia chegará a hora de enfrentar as asas que tememos nessas coisas que voam sobre nós nas noites de sereno. Ao ouvir o som de seu galope, saberemos. Mas o quê? O que faremos ao nos atingir o impulso dessa harpia furiosa, a letalidade de sua língua eivada de veneno?

Depois

Depois do amor, quando cessaram todos os perigos e aquela flor feita de vespas passou a zumbir no meu ouvido o seu canto nada sedutor, ouvi o teu pedido de perdão cheio de citações de autores vivos. Eu não quero mais saber das tuas aspas a me devolver aquilo que não digo, a me dizer tais frases que eu não lia. Tiraste-me da casa em plena noite e ainda por cima mataste-me o cão com cujos dentes eu sempre te mordia. O que falavas é uma fala de açoites: “Eu não te amo, o que fazer? Perdoa-me este momento irrefletido de paixão”. E novamente em luto eu disse não a esse amor que falece enquanto luto com todas as forças que não tenho, a desterrar a ilusão, embora doa em mim. Mas não acreditas na linha frouxa e fraca desse meu desenho de dúbios sinais, na minha fala simplesmente rouca de tanto mentir até a vontade perecer, até que o orgulho cale a minha boca, até que tudo que fere volte a me ferir. É tão desolador estar assim, à merce desse carinho roto que não tens por mim nem por ninguém. Se

Tigre

Eu sempre quis domesticar um tigre pequenino, um felino ainda bebê, com garras tais como se fossem espinhos de delicadas flores. A ele alimentaria com um leite entre morno e quente, um leite grave, até que suas listas vagamente amareladas ganhassem o rotundo negro que os faz (aos tigres) temíveis nas florestas, assim como a portentosa juba transfigura os leões, estes seres quase femininos, no terror insuperável das savanas. Ele cresceria até o limite de suas forças, até ficar um animal urgente, capaz de devorar um ser humano apenas com o susto das mandíbulas de aço, até que seus fios de prata, o ouro de suas vestes (o cobre apenas lhe reveste a máscara dos dentes), a beleza feita de intensidade e músculos, assemelhada à de certas mulheres e à de raríssimos cavalos, nos deixassem um só amontoado de dor e fibras pelo pátio, o corpo e a alma inteiros, mas feitos em pedaços.

Guarda-chuva

Sobre nós as cerejeiras se abrem como um guarda-chuva de lágrimas amarelas. Mesmo que abrase o sol fora desse casulo de flores, ali embaixo, no túnel em que se espera o desabrochar das cerejas, a brisa amena varre os cabelos e abraça-nos com suavidade. É importante ficar ali, a descansar um pouco do que há lá fora, no meio do asfalto, sob os edifícios e além, no alto céu, onde uma cortina de fumaça evoca o apocalipse. É imprescindível estar sob o manto das cerejeiras, sob seu vestido amarelo de festas feito especialmente para um noivo. É fundamental aspirar o perfume das cerejas, ainda que elas não estejam lá e haja apenas flores, a brisa e nós, somente nós, o que é uma forma certo modo simples – e surpreendente – de aproveitar a vida.

El olor exhausto de velas

La mañana apenas había llegado y todos estaban tristes. Durante la madrugada lloró bajito. Sólo se oyó el leve sonido de un alma gimiendo. En todo el aire se respiraba el olor exhausto de velas. Un perfume aceitoso de flores impregnaba la sala invadía el cuarto abierto donde la pequeña hija lloraba. Sobre la mesa estaba el muerto. Fuera simple, fuera hermoso, hasta que un ala sombría lo alcanzó como un sable. Ella todavía no creía: las niñas ahora sin padre, el marido asesinado. Cortara más que a él aquel golpe de navaja. El filo la dejó en pedazos. Si fuera piedra, un astillero la habría destrozado. Habría implosionado enteramente si fuera otra arma, un fusil, una escopeta. Ahora estaba sola, ningún ángel descendía de los montes para consolarla. Había aquel viento helado que soplaba dentro del alma. El invierno era un monstruo  que retrasaba su llegada. Se movía a toda la casa en una infinidad de rezos. La vida de Leonarda fuera de pasión y locuras. Mujer, madre, ama

Paisagem

O cenário ao pé desta montanha é a paisagem de um conto de horror. Está caída a vegetação, um puma ao longe espreita seja lá o que for à luz pálida da Lua, enquanto a flor no vaso a um canto desfalece. Uma neblina áspera e fulva cobre o vale onde não se ouve mais nenhuma prece. Também em nossa alma às vezes semelhante paisagem desce com a fumaça de todo o seu pavor. Esconde-se na sombra dessa hora baça, na fraca luz de sua cortina enevoada, em sua pele que se sabe nua, certa amargura que jamais se esquece (e ainda a mágoa, o desalento e o rancor). Mas eis que de repente a aurora nasce. Tudo o que era luto pronto se desfaz. A casa de fantasmas era só uma choupana deixada há tempos pelos ancestrais. Aquele velho tronco decerto não é um puma, nem mesmo a aparição da mais remota fera. Do mesmo modo que a luz do Sol revela a nós que nossos medos são banais, a alma em pranto também se regenera logo que tocada pelo amor e seus sinais, assim que a esperança assume o leme deste barco em fuga –