Athos Bulcão: gênio da cor – I



Um gênio da cor e do design consagrou seu talento e energia a construir um dos maiores monumentos da arte brasileira de padronagens. Sua obra inigualável, espalhada pelos mais variados espaços, ambientes e construções da Capital Federal, sofre com o descaso e a depredação que só cegueira e ignorância conseguem justificar.



Athos Bulcão nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Catete, no dia 2 de julho de 1918. Faleceu aos 90 anos em Brasília, a 31 de julho de 2008, de parada respiratória, no hospital Sarah Kubitschek, após uma luta intensa contra o Mal de Parkinson. “O tratamento me exaure. Às vezes, durante as crises, esqueço dias inteiros”, dizia ele. Era filho de Fortunato Bulcão e Maria Antonieta da Fonseca Bulcão. O nome Athos homenageia o personagem de mesmo nome do famoso romance de capa e espada Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas.
O jovem Athos que fazia rabiscos e garatujas que não despertavam a atenção de ninguém foi levado à arte por uma série de acasos, mas assim que chegou a ela, por essas vias transversas, nunca mais pôde deixá-la para trás. Para não abdicar de sua vocação de “poeta”, chegou a desistir do curso de Medicina, em 1939, para se dedicar inteiramente às artes visuais. Tornou-se um mestre da cor e da padronagem. Pintor, escultor, arquiteto e mosaicista, é considerado um dos mais expressivos e importantes artistas da modernidade. 
Foi também artista gráfico e desenhista.



Um ator pavoroso

Chegou a tentar o teatro, mas fracassou fragorosamente como ator no grupo Os Comediantes. Ele mesmo comentava, divertido, as críticas do diretor a sua atuação: “Você está com cara de pedra. Procure dar uma expressão humana”. Mas foi essa mesma turma que o apresentou a expoentes como Vinicius de Moraes, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Entre outras insanidades, foi sócio de Monteiro Lobato numa empresa de exploração de ferro.
Num excelente texto sobre o artista e seu temperamento, o articulista Severino Francisco traçou o perfil de Athos como o de um recatado incorrigível: 
“Pertencia à raça dos tímidos, dos que ficam esperando em casa que alguma coisa boa caia como um raio em sua cabeça. Quase sempre era salvo por amigos. Em 1958, Oscar Niemeyer o convidou para fazer colaborações na arquitetura da Novacap e ele nunca mais abandonou a cidade. Era uma época em que passava por dificuldades financeiras, sobrevivendo com decoração de interiores, atividade que detestava. Por sorte, Brasília, uma das capitais modernas do século 20, caiu não em sua cabeça, mas a seus pés, proporcionando ao artista a rara oportunidade de intervir na arquitetura de uma cidade. Chegou a Brasília no momento em que ela era só um imenso descampado envolvido pela poeira, arrastado por redemoinhos. Isso não impediu que ficasse hipnotizado pela paisagem áspera, a amplidão do céu, a luminosidade, o silêncio, as noites sem luz elétrica com a abóbada cravejada de estrelas. A sensação de espaço encantou Athos. De modo que achou natural permanecer em Brasília. Era uma cidade boa para trabalhar”.
Era considerado pelos amigos um homem encantador. Com seu silêncio, delicadeza e humor ácido, fez amigos por onde passou. “Pertencia à estirpe (em extinção) dos cariocas ilustrados, civilizados e elegantes, espiritualmente elegantes”, diziam dele.
Foi o primeiro artista da Capital Federal. 



Vida de artista

A primeira exposição individual de Athos aconteceu em 1944, na inauguração da sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, ele passou a trabalhar como assistente do pintor Cândido Portinari na execução do painel de São Francisco de Assis da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. Depois mudou-se para Paris, onde viveu até 1949. 
Pelo conjunto da obra, recebeu vários prêmios e condecorações, entre elas a Ordem do Mérito Cultural, recebida em 1995 do Ministério da Cultura. 
“Nenhum artista no mundo tem uma obra com onipresença tão grande quanto a dele. Ele deixou uma herança enorme para Brasília e para o mundo. E também tinha um caráter incrível, era uma pessoa de transparência e leveza únicas. Era um artista completo, um ser humano completo”, diz Bené Fontelles, artista plástico, compositor e escritor.
O também artista plástico Darlan Rosa afirmava que, de todos os pioneiros que vieram com Niemeyer, Athos foi o que obteve atuação mais marcante. “Quase todos os prédios do Niemeyer têm um trabalho do Athos. O trabalho dele é tão integrado à arquitetura que as pessoas acabam nem percebendo a importância, o valor de sua obra. Tente imaginar o Teatro Nacional sem o painel de Athos. Aqueles símbolos são tão importantes quanto a própria forma do prédio”.




Primeiro o desenho

Antes de pintar e esculpir, Athos desenhou. Desenhos sobre papel que mais tarde ganharam forma definitiva em azulejos e painéis. As possibilidades de uso da geometria nesses suportes aproximaram-no da arte de vanguarda que busca se integrar à arquitetura e ao urbanismo. O artista se aproveitou das heranças do construtivismo e da tradição para criar os seus mosaicos e trouxe a azulejaria portuguesa do Período Colonial para o século 20 – para os espaços públicos e privados das cidades, especialmente os da Capital idealizada por Oscar Niemeyer, ­realizando uma associação pensada e consciente entre o antigo e o novo, entre arquitetura e arte.
Para o premiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, esse espírito da obra de Athos é o mesmo da arquitetura do Niemeyer – o “de buscar as heranças do barroco numa arquitetura mais livre, mas formal, incorporando ao mesmo tempo um discurso moderno. Athos é a grande referência desse tipo de pensamento estético brasileiro”. Para P.M., Athos era a flor presente na obra de Niemeyer. “As coisas que ele fez junto à obra do Oscar são sempre de uma clareza, uma oportunidade muito linda, compondo o que se pode chamar de belíssima brasiliana. Athos deixa claro que, entre arte, ­ciência e técnica, existe solidariedade absoluta na obra de arquitetura. O relevo do Teatro Nacional é tão próprio daquela obra que demonstra ser possível imaginar absoluta coerência no discurso entre arquitetos, artistas e técnicos”, afirmou.
Em Brasília, Athos deixou impressos a elegância de suas opções de cor, o requinte de seu desenho, direcionados à sutil utilização dos espaços, em composições abstratas e de síntese incomparável, na busca de leveza, arejamento, luz. São mais de 200 obras de integração arte-arquitetura espalhadas por praças, prédios de repartição, escolas – concebidas a partir de uma estética diferente de quase tudo o que havia sido feito no azulejamento e nos elementos de intervenção na arquitetura.

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