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Mostrando postagens de outubro, 2019

Tigre

Eu sempre quis domesticar um tigre pequenino, um felino ainda bebê, com garras tais como se fossem espinhos de delicadas flores. A ele alimentaria com um leite entre morno e quente, um leite grave, até que suas listas vagamente amareladas ganhassem o rotundo negro que os faz (aos tigres) temíveis nas florestas, assim como a portentosa juba transfigura os leões, estes seres quase femininos, no terror insuperável das savanas. Ele cresceria até o limite de suas forças, até ficar um animal urgente, capaz de devorar um ser humano apenas com o susto das mandíbulas de aço, até que seus fios de prata, o ouro de suas vestes (o cobre apenas lhe reveste a máscara dos dentes), a beleza feita de intensidade e músculos, assemelhada à de certas mulheres e à de raríssimos cavalos, nos deixassem um só amontoado de dor e fibras pelo pátio, o corpo e a alma inteiros, mas feitos em pedaços.

Guarda-chuva

Sobre nós as cerejeiras se abrem como um guarda-chuva de lágrimas amarelas. Mesmo que abrase o sol fora desse casulo de flores, ali embaixo, no túnel em que se espera o desabrochar das cerejas, a brisa amena varre os cabelos e abraça-nos com suavidade. É importante ficar ali, a descansar um pouco do que há lá fora, no meio do asfalto, sob os edifícios e além, no alto céu, onde uma cortina de fumaça evoca o apocalipse. É imprescindível estar sob o manto das cerejeiras, sob seu vestido amarelo de festas feito especialmente para um noivo. É fundamental aspirar o perfume das cerejas, ainda que elas não estejam lá e haja apenas flores, a brisa e nós, somente nós, o que é uma forma certo modo simples – e surpreendente – de aproveitar a vida.

El olor exhausto de velas

La mañana apenas había llegado y todos estaban tristes. Durante la madrugada lloró bajito. Sólo se oyó el leve sonido de un alma gimiendo. En todo el aire se respiraba el olor exhausto de velas. Un perfume aceitoso de flores impregnaba la sala invadía el cuarto abierto donde la pequeña hija lloraba. Sobre la mesa estaba el muerto. Fuera simple, fuera hermoso, hasta que un ala sombría lo alcanzó como un sable. Ella todavía no creía: las niñas ahora sin padre, el marido asesinado. Cortara más que a él aquel golpe de navaja. El filo la dejó en pedazos. Si fuera piedra, un astillero la habría destrozado. Habría implosionado enteramente si fuera otra arma, un fusil, una escopeta. Ahora estaba sola, ningún ángel descendía de los montes para consolarla. Había aquel viento helado que soplaba dentro del alma. El invierno era un monstruo  que retrasaba su llegada. Se movía a toda la casa en una infinidad de rezos. La vida de Leonarda fuera de pasión y locuras. Mujer, madre, ama

Paisagem

O cenário ao pé desta montanha é a paisagem de um conto de horror. Está caída a vegetação, um puma ao longe espreita seja lá o que for à luz pálida da Lua, enquanto a flor no vaso a um canto desfalece. Uma neblina áspera e fulva cobre o vale onde não se ouve mais nenhuma prece. Também em nossa alma às vezes semelhante paisagem desce com a fumaça de todo o seu pavor. Esconde-se na sombra dessa hora baça, na fraca luz de sua cortina enevoada, em sua pele que se sabe nua, certa amargura que jamais se esquece (e ainda a mágoa, o desalento e o rancor). Mas eis que de repente a aurora nasce. Tudo o que era luto pronto se desfaz. A casa de fantasmas era só uma choupana deixada há tempos pelos ancestrais. Aquele velho tronco decerto não é um puma, nem mesmo a aparição da mais remota fera. Do mesmo modo que a luz do Sol revela a nós que nossos medos são banais, a alma em pranto também se regenera logo que tocada pelo amor e seus sinais, assim que a esperança assume o leme deste barco em fuga –

Ciúme

Eu estive aqui na madrugada em que os moradores desapareceram. A casa ficou vazia, os vasos de plantas foram atirados no chão do pátio. Tapetes mancharam-se de vinho verde, janelas ficaram aos pedaços e todas as paredes, antes pintadas de amarelo-cobalto, tingiram-se de um vermelho vivo que se assemelhava à pigmentação do ciúme. Quando chegaram os homens e as mulheres da perícia, acharam fotografias rasgadas na lixeira da sala, respingos de poemas pelo chão do quarto, três ou quatro retratos arrancados das molduras. A legista falou sem hesitar que tudo ali estava morto, mas não de crime premeditado, se é que em casos como aquele um crime houvera, se não fora apenas o áspero cenário de uma fuga. Tudo dizia que um erro de cálculo, um equívoco, um acidente gestado pela cortina do silêncio deixara esfumaçado o ambiente, e que alguma coisa já gritava, rouca de não se fazer ouvir (com todo aquele barulho pela casa). De tanto que não se podia ver, o tiro fora dado num intenso escuro, inteiram