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Mostrando postagens de 2014

Cor de cinza

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Uma violenta chuva alcançou o lado norte da ilha no Dia de Finados. Chegou repentinamente, e logo nas primeiras horas da manhã já transformara cada palmo do rancho num mundo cor de cinza. Certa escuridão espessa e vaporosa tomou conta de tudo. Nas coberturas de zinco, lá fora, a água produzia um ruído de batalhas, de trem avançando sobre trilhos. As árvores mais frágeis eram curvadas furiosamente pelo vento e suas cabeleiras, em frenesi, varriam o solo enlameado. Era um dilúvio. Ao meio-dia, um sopro mais forte do vento atirou longe metade do ­telhado da cavalariça, rebentando ripas e assustando os cavalos. Ouviam-se seguidamente relinchos agudos que logo se perdiam no ar, tragados pelo barulho da tempestade. Dudu ficou preocupada: os bichos poderiam ter se machucado. O espedaçar de paus e telhas tinha sido tão violento que seu som ainda ecoava. Tão longe e tão violentamente foram atirados os pedaços da cobertura envelhecida que na certa haviam atingido algum animal. O mundo se aca
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O cão É domingo de maio.  Faz frio, está seco. Estou sentado no pátio da casa ouvindo longe o latido constante de um cão abandonado num quintal qualquer. Há um céu cinzento.   Desde as primeiras horas, late esse cão. Faminto? Provavelmente preso. E já está rouco. Em vão caminho até o fim da rua para tentar localizar de onde vem o grito. No emaranhado de árvores, muros e casas altas, não consigo saber do cão exáspero.  Ligo à Sociedade Protetora dos Animais e uma cantilena do outro lado diz:  Deixe recado após o sinal! Meu cérebro fervilha, minha indignação também. Pergunto a umas poucas pessoas que encontro na rua: Onde o cão? Mas todas passam rápido demais, assustadas demais. Ninguém está interessado em vozes, gritos, cães, sobretudo se estão famintos. Tento, as mãos em concha, apurar a percepção deste velho e cansado ouvido para ouvir melhor o animal e seu lamento, mas de repente cessa o grito angustiado, e não retorna mais.  Penso que lhe chegaram os donos com o de

Poema Visual 15

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Poema Visual 2

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Poema Visual 1

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Um tigre indelicado Chegamos à fase final da edição em língua inglesa de meu livro "A noite dos casacos vermelhos". Descubro aos poucos as intrigantes diferenças de pontuação entre os textos em inglês e português, sutis, mas interessantes. Só agora, diante da necessidade de conferir ponto a ponto a edição, vim a perceber essas diferenças, principalmente em relação aos diálogos; ao uso de aspas, reticências, travessões e dois-pontos. Mas não sou um especialista, sou apenas um curioso das questões da língua (ou das línguas).  A tradução foi feita de forma dedicada e competente por Aaron Stanley, que mora em Arlington, no Estado da Vírginia (EUA), e pela querida Talita Sales, brasileira aqui de Brasília, a dois passos de nós – que manteve com o jornalista americano uma troca intensa de informações para chegar ao melhor resultado.  Agradeço a eles o empenho que agora permitirá levar a um público muito mais amplo essa história de mistério e suspense, Night of the Red Coat
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A Canção de Lawino – de Okot p'Bitek Há duas décadas encontrei entre amontoados de jornal um recorte de poema do inquietante  autor africano  Okot p'Bitek. E assim, por acaso, a  Canção de Lawino  foi o meu passaporte de entrada a esse universo incômodo e fascinante que é a literatura feita no continente-berço de nossos antepassados. Desde então tenho recolhido fragmentos (são pedaços de texto na maioria das vezes) da poesia africana, quase sempre dolorosa (como poderia ser de outra maneira?), dura, espiritual, profunda porque viva .  É uma literatura difícil de encontrar, literalmente, mas essencial – se quisermos pensar o ser humano à margem dos fru-frus da vida ocidentalizada, consumista, vazia e superficial em que (no mais das vezes) mergulhamos. Okot p’Bitek nasceu em Gulu, a maior cidade acholi de Uganda, em 1931. Ainda muito jovem, começou a escrever.  Em 1958, após um torneio de futebol (ele jogava na seleção de seu país),  permaneceu na Inglate
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Uma das pérolas da Amazônia Há 23 anos estive em Bragança, no Pará, para falar de literatura, em razão de minha participação no projeto O Escritor na Cidade, da Fundação Biblioteca Nacional, idealizado pelo poeta Affonso Romano de Sant'Anna.  Fui acompanhado de um conjunto de profissionais, entre eles  Elza Lima , uma das grandes fotógrafas da Amazônia, e lá ficamos por dois dias de intenso mas fascinante trabalho.  Ao retornar a Belém, publiquei na primeira página do caderno de cultura do jornal O Estado do Pará o texto que aqui reproduzo.  Infelizmente não consegui recuperar as belas fotos de Elza que o ilustraram (há tanto tempo estamos distantes...), mas me permiti capturar na web algumas imagens dessa simples, bela e acolhedora cidade paraense, divulgadas pela prefeitura local.  Bragança Sob um sol de quase quarenta graus, ela diz (olhando na distância o porto, casas e pontes) que estes mais de três mil quilômetros quadrados da cidade de Bragança j
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Ouvindo My Funny Valentine Com Lucia Micarelli ao violino, esta música me lembra, sempre que a ouço, uma de minhas filhas, para quem escrevi as duas "canções" que agora compartilho.  É de uma melancolia dolente e bela. A PRIMEIRA CANÇÃO DE NADJA Para não seres eternamente só, abraça o corpo inerte da boneca, enquanto teu rosto doura-se de opalinas, brilhos e amarelos e tuas mãos (tão finas) dedilham sedas e babados. Para não seres eternamente pó, enquanto a luz incide nas faces ruborizadas, róseas com que agradas o coração dos homens seriosos, acende fogo no peito dos meninos, abrasa em óleo o cansaço dos ungidos no incêndio dos desejos. A SEGUNDA CANÇÃO DE NADJA Nadja, hoje ganhei um talismã. Andei por horas o dorso da praia. Chovia fino. As pedras eram azuis e amarelas. Onde eram vermelhas, escorregavam. Pequeninos caranguejos escondiam-se em furos diminutos, nas rochas encharcadas, nas cavernas. Súbito, olhei no leito transparente: a água cristalina, uns peixe
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Anima Eis um dos poemas de Uma canção para Elise .   Feito para ser falado, soa diferente dos textos concebidos para leitura exclusiva em papel, silenciosa.  É um tanto coloquial, por isso, derramado, com um ritmo marcado para as inflexões em voz alta.  Utilizei como recurso algo inerente ao que a psicologia analítica de Jung chama de Anima (pronuncia-se "ânima") –   em que o inconsciente do homem encontra expressão como uma personalidade interior feminina. Você não soube Naquela noite, você disse que ia embora e eu fiquei sem voz, o chão fugiu debaixo dos meus pés, e eu só ­pensei: meu Deus! e tive vontade de morrer. Só não chorei um rio porque peixes miúdos não choram,  não no fundo das águas! Mas o peito queria explodir: uma agonia antes de você chegar era revolta depois medo depois mágoa.  Ficou no coração uma espada só lâmina. Ah, nunca foi tão difícil dormir.   Os lençóis pesavam como chumbo – a escuridão era um monstro, o travessei