Sempre tive uma especial fascinação por Van Gogh. Já escrevi contos sobre esse holandês extraordinário que realizou em pintura aquilo que durante muito tempo só achei possível com a música e o poema. E logo que me sinto atacado pelo mundo ou um tanto desalojado nas cidades enlouquecidas, penso em Van Gogh e em sua trajetória de indivíduo exasperado pela repetição, isto é: contra a vida. O longo poema que dediquei a ele e a uma de minha filhas diz um pouco do que aprendi com sobre Vincent Van Gogh. Ao fim, a canção emblemática e dolorosa de Don McLean, Starry Starry Night, que surpreendeu minha menina, que não a conhecia. Foi um prazer revisitá-la.


De Vincent para Ana



Vincent foi um garoto
recluso
talvez um pouco mais
soturno,
um pouco mais sozinho
que outros meninos
da mesma idade.

Fervoroso
– como o pai havia sido –,
pensou: havia
ali
um chamado
para Ele,
no ar, na brisa, no céu
uma ventura
no Cosmo,
um chamado
para Deus?

Vincent lia
a Bíblia
obsessivamente.
Queria ser
“mensageiro”
de uma Palavra
que cegasse
o homem
por inteiro.

Mas havia algo errado,
em algum lugar
estava  tarde,
em algum ponto
da prece
havia um não
atado
a um coração
que arde.

Por mais que
estudasse,
jejuasse,
orasse,
não sentia
Deus,
não
como poderia
não
como em verdade
aquela unção
próxima da fé
seria
(ou deveria ser).

Ele não compreendia...

Era preciso buscar
outro chamado
a dar sentido à vida
onde também possível
fosse encontrar Deus
fora dos céus.

Van Gogh
passou a pintar
quadros,
a respirar o ácido
titânico
das tintas,
a placa tectônica
das linhas
alucinadas,
a mesma disciplina
do fervor religioso:

horas incansáveis
de estudo;
uma prática feroz
dos movimentos,
os intrincados
nós
dos pés,
os polos azuis,
os campos
da Holanda,
os céus,
plátanos,
narcisos
diáfanos,
bandas
de pífanos,
aves num rochedo.

Pintou fluorescentes
flores azuis,
campos de trigo,
girassóis,
o amarelo
ouropálido
dum catre
num mísero quarto
sufocado
em Avec sur Oise.

Van Gogh sentia fome
e trocava sonhos
por comida.

Rascunhos,
exercícios de cor
feitos no ar,
feixes de luz invadida,
desenhos sem “importância”:
estranhas aves vadias
um mar agitado
de corvos,
algumas flores sanguíneas
que os comerciantes usavam
para embrulhar peixes
no fim do dia.

Quanto mais estudava
– e pintava
– e jejuava –,
mais sentia naquele ofício
o ar de sua vida,
embora ninguém desse
importância
ao que fazia
aquele moço obsessivo,
transtornado,
cheio de manias.

Pintava sem cessar,
sem ver mais nada
ninguém
no quadro da retina.

Vincent se sentia
capaz de algo
novo,
de representar o mundo
de um modo
novo,
diferente das telas
aprisionadas
de outros pintores
que conhecia.

Mas logo vieram
os delírios.
As alucinações.
As visões
misturavam-se às cores
intensas,
a tal ponto que não mais
distinguia,
quando pintava,
a pintura pintada
da realidade
do mundo
que havia.

Vendeu um único
quadro
em toda a vida:
um mísero vaso de flores?
talvez
pintado no deserto
das epifanias.

A tortura de saber-se
um gênio
(a quem ignoravam),
de amargar
o futuro que era
ele,
levou-o a um desacordo tal
com o mundo
que preferiu abandonar a vida,
deixá-la de vez assim
sozinha
desapetecida
a tiros de fuzil.

Aquele desvairado ofício
o consumiu
vivo,
um trabalho
insistente e alerta
sempre
(como um guizo)
uma tarefa
à  qual se dedicara
por inteiro
(embora já lhe faltasse
a orelha esquerda
e a luz perfeita do juízo).

Van Gogh não venceu
a  indiferença
dos donos de sua época.
Van Gogh não venceu
a insensatez
dos homens de sua época.
Van Gogh não venceu
a estupidez
dos frágeis como ele
(que não suportam a crueldade
do mundo).

Mas não importa.

Van Gogh

ensinou ao mundo
que uma alma
pode mudar
a rota das estrelas,
transformar
campos de escuridão
loucura
cinza
nardos


flores vivas


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