Outro texto de Uma canção para Elisa, feito em quase madrugada, entre taças de vinho, blues e papel de pão, daí que um tanto sombrio (antes de passar para o lado ensolarado da rua).

Caligrafia 


Ganhei uma caneta importada e passei a escrever cartas breves em papéis azulados, azul clarinho.
Há ­muito não escrevia cartas.
A vida enredou-nos no tumulto das contas a pagar, no tempo contado em moedas, na necessidade de prover os nossos com pão, agasalho, ternura.
Cartas são um luxo dos que ainda vivem ao largo da máquina da pressa. São delicadezas de uns poucos que conseguem, apesar das ondas de calor e insetos, caos e ­trânsito, permanecer ­(quase) ­inteiramente
­humanos.
O tempo, este senhor de barbas brancas, dentes alvos, transformou-se, à minha revelia, no meu mais feroz adversário, quiçá inimigo.
Ele ri para mim a cada minuto em que caminho, juntamente contigo e todos os outros, a esse
sem-fim,
                     quase-recomeço,
                                    novo-crepúsculo,
                                                                              passo a passo na senda desta vereda inóspita; rumo a essa ­transitoriedade a que alguns chamam M., que se entretém a atormentar cotidianamente os vivos com murmúrios de seda.
Prossigo, porém, armado com a paciência de um beneditino.
Olho o mundo surdo lá fora e penso: por que isto existe, se a vida é breve? Mas projeto o olhar para trás, há 35 anos, e vislumbro com um travo na boca tantos acontecimentos trágicos, solenes; tantas vidas numa única precária vida, que sinto – somos abençoados!
Tanto foi mudando e foi mudado enquanto sigo em voos cegos – eu que não fui porque não deixaram e me conformei ali parado, ao pé da porta, como um vaso em que só pousaram areia e orvalho, regado todos os dias por um menino tolo que ainda não percebeu que não há mais flores, que as plantas murcharam, 
que nunca ­houve um mínimo caule magro, um mísero e mofino verde em meio às densas porções de barro.
Onde se escondeu o jovem triste que foste outrora? Exilou-se a que obscuro planeta?
Ficou este ser mais velho, denso, ainda não sereno; este que se deixou amarfanhar, a quitar todos os meses notas pro­mis­sórias, ainda sem ser rico, cansado de lutar com os ­vazios, por saber que só há vazio lá fora; por imaginar que tudo o que existe de vida está aqui dentro, a centímetros da mão, talvez tão próximo que não se pode ver, a não ser que se o veja antes do jantar das oito, antes de mais uma vez errar de novo.
Mãe, a casa ainda precisa de cortinas; o sol intenso vaza das janelas e nos alcança mal chega a manhã, 
e ­ilumina os aposentos, e já não dormimos mais, porque a luz que nos cega é cega de doer; afiada e vil como a faca dos degenerados.

Descobri que é possível curar amor com calda de chocolate e amêndoas, que aquele amargo doce aos poucos consumido vai lentamente liberando nas células do sangue um torpor de eterno que alivia essas chagas que nos deixam à beira duns abismos de mortais ciúmes. 

Comentários

  1. Rei, ler algo de sua autoria antes de deitar, seja triste ou alegre, faz com que a noite seja mágica. Dá vontade de ficar lendo, lendo até o sol "vazar das janelas". E só ai vc percebe que a noite findou.

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