A delicadeza do olhar


Há treze anos, publicamos pela Letraviva um livro intitulado Quem está escrevendo o futuro?, com 25 textos – de autores como Affonso Romano de Sant'Anna, Frei Beto, Leonardo Boff, Moacyr Scliar (e outros grandes nomes) – e mais ou menos 18 fotografias do genial Sebastião Salgado, para as quais fiz o mesmo número de poemas, a que mal chamei de "legendas poéticas". 
Fui movido pelas imagens a fazê-los, inquieto com o que via ali na minha frente, na tarefa de editor, com aqueles registros profundamente humanos do artista. 
Os poemas foram diluídos no capítulo assinado por S. Salgado, Um olhar sobre o século XX, que trouxe também ilustrações de Branco Medeiros. 
Ontem, revendo um vídeo sobre o projeto Gênesis, desse artista internacional a quem muito admiro, decidi republicar aqui os poemas, com algumas das fotos dele que considero emblemáticas de seu modo de ver o mundo: aquela delicadeza própria de seu nômade olhar, que peço licença para reproduzir.


Semeadura


Untar com sal de lágrimas
os solos onde só brotem pedras
em linhas vãs de poeira,
tirar do ventre-mãe-Terra
verdura, couve, cacto, flor de amoreira,
campos de trigo, gente.


Educação pela terra


Vida esgarçada, triste,
veias-raízes,
solo de estertores.
Barro, charco e semente,
estacas de alma viva,
aprendizado de dores.
Flores, de repente.



Respiração


Em busca de ar,
no campo-chão.
No horizonte só treva,
boca amarga, pão.
Quem dará?
Futuro de gravetos.
Quem dirá?
Geração a geração,
filhos e netos
em busca de ar.



Cárcere


Em que cárcere,
em que campo
encontrará pássaros presos,
agrilhoadas auroras,
pés de gesso?
Que lábio entreabrirá
em ácido cansaço
o riso que não rira
num rosto que não existira?



A idade da pedra


Perpasso, mão na mão,
o fluxo da vida,
a história, a solidariedade.
Agarra-te a mim, que atravessei os anos
como um salgueiro exposto ao vento,
às intempéries...
E aqui estou – vívido e vivo
sob a amurada do teu colo.
E até creio que somos quase anjos,
quase santos.


Êxodo


O dia seguinte ao de todas as vidas
não será o da última hora,
não será o do fim dos caminhos
todos
que levam para fora;
não será o da saga última
pelos juncos e entre o matagal
na busca de clareiras.
Mas será fatal se,
longe da pátria,
ermo, sem bandeiras,
seguir descalço em terra fria,
nas noites sem luar que chegam,
em manhãs que não queria.

Canção


Só se ouve o cantochão longe da turba,
vencido o turvo, o ruído dos aglomerados.
Uma canção só se ouve quando se alcança
o que tem ela de dança e de solo de enamorados.
Pé ante pé, um passo após outro passo...
Pronto: está gestado um mar de humano lençol,
de algas e sargaços.





Ulisses


O que enfrentará Ulisses
em nau de pedra e cascalhos,
sob um céu deserto de aves?
Nenhum canto de sereia,
maremotos, pedregulhos,
nenhum silêncio que fale
de ânsias que nada valem;
nem Penélope nem Jove.
Enfrentará o teu rosto
de palidez e de enganos,
teus fuzis, tuas balas,
teu dorso nu, teu orgulho.



Geografia


O corpo que definha
Humanamente ainda
Não se mede em estrias.

Ouvir seu coração
Pulsar
Sua medida
Como um relógio marca
Em horas
O suplício
De sua delicada fibra.

Esquecer não
A dor
A que se achou submetida
A flácida ilusão
De sua perspectiva.

Esquecer não
Que lhe tiraram a linha
Demarcadora
De sua terra e vida.

Terra
Que jamais
Esqueceria.


Ataque


Quem chorará tua alma
a milhas de distância?
Quem fenecerá contigo
nas noites-bombas,
num céu de balas que cruzam
o ar carregado de angústias?
Quem saberá do que sonhas
pr’além do vale da vida,
povoado de penumbras?



Atlas


Mover toda engrenagem
com fé e músculos;
abrir as portas do impossível
com dardos d’Esperança;
mover adagas de ventura,
em busca do invisível,
do melhor dos mundos.


Femina


Vivo aqui meus desejos
de mulher até a cintura,
todos insatisfeitos,
todos na escora do medo,
todos à beira do abismo.
Um pouco de febre arde
na fronte da angustura
– beco que corre dentro
quando lá fora há fartura
de horizonte sem nada
e nada dentro povoa.
(Nada de um só
é um só ermo.)
As pedras seguem-me o passo
e sigo atrás do que sobra,
entre a rocha e o mormaço.
Cobra que sibila a esmo.


Sem saída


A vileza que trai o teu olhar
todas as noites,
onde é que ela reside?
Em que esquina, turva, mórbida,
em que erodido precipício (esse vampiro)
a farsa recomeça e subsiste?

Não sei qual a canção – se hipnotiza
mais que a mordida
gritar de horror num beco sem saída.


Facas


Esperança
de que os olhos ocultassem
o passado, o presente de sombras.
Mas estavam lá: pássaros na chuva,
aves agoniadas em pleno dia,
mãos golpeadas,
facas do desafeto...
Doíam.


O novo homem


Não há melhor refúgio do que o sono.
A tarde irá arder intensas labaredas,
as naves cruzarão o céu com seu presságio
manchando a aurora com borrões de sangue,
mas estarás seguro no teu sono;
estarás seguro entre os anjos
que habitam os sonhos todos, santo.
Dos frutos da horta, já sem fome,
guardarás um pouco
àquele que virá,
ao novo Homem.


Tapeçaria


A mulher constrói
no corpo denso
sob os céus
o ânimo dos deuses,
o vinho do passado
que morreu,
mas que prossegue
vivo ainda
a reverberar um eco: Eu.

Com a fina farpa do olhar
vaza as paredes
e pende nas mãos
a pequenina rede 
do afeto
com que embala um outro sono: Ele.

E fibra a fibra tece
um sonho
no solo do deserto.



Lâmina


Nada de gritar
sem eco
dentro do silêncio.
Toda voz agora deve ser ouvida
no que tem de revolta e baque seco,
de pedra sobre a água.

Um fio de lâmina
untado de verduras
e perfume de flores
deve cortar a vida
ao meio – e separar
bofetada e beijo
paralisia e dança,
poça d’água e rio;
sopesar numa balança
o calor e o frio
e dar justa medida
a eros e tanatos.

Só o que resta agora
é pagar a Vida
com a dádiva de um riso.

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