Uma nova história de Brasília



Uma história pop, em linguagem rápida e texto fluente, mas com incomum precisão investigativa, desmistificadora de relatos oficiais e reveladora de heróis de carne e osso – sobre a capital do país. Isto é A Bailarina Empoeirada: Histórias do Povo de Brasília, o livro de Luiz Humberto e Noemia Boianovsky que editei com muitíssimo prazer, lançado em agosto deste ano. Registro aqui, em Palavras do Editor, o comentário que fiz na abertura do livro, porque importante. O Correio Braziliense noticiou em meia página, em 12 de setembro.


Palavras do Editor

Durante muito tempo as narrativas sobre a história consistiram em erigir heróis e comandantes extraordinários, grandes feitos e templos grandiosos, gigantescos vilões e enormes vultos. Foi não sem resistência que, a certa altura, uma nova semeada de historiadores decidiu incorporar àquilo que grandemente se contava a visão dos simples, dos mínimos, dos anônimos, daqueles que, independentemente do grau e do teor de suas realizações, ficaram perdidos na multidão, dissolvidos no mar de ocultos. Este livro é inegavelmente o trabalho de dois autores desta segunda leva, dess’outra estirpe de historiógrafos, que aqui enxergaram num aglomerado de gente a História de um povo, feita de barro e cimento, areia e brita, tábua e zinco, um mundo a se erguer entre superquadras e blocos, entre setores comerciais, industriais e habitacionais, a seguir em frente neste exato momento, numa história ainda em processo.
Por um longo tempo, algo profundamente ligado à necessidade de boa aceitação das narrativas como que exigia dos autores que os relatos da história fossem potencializados na figura de um ser ou em um feito proeminente que sintetizasse, num esforço maniqueísta, o inferno ou a glória, a destruição ou a realização de tudo. Ainda se tentava dar toques meramente humanos aos potentados, ao belo ou ao horror que eles criavam, num autoengano que mal disfarçava a necessidade de agradar o leitor ou a plateia, sedenta de aventura e mitos. Em meio a isso, raramente se procurava levar as pessoas a se  encantar com a história dos invisíveis – nem reis nem nobres, nem heróis nem potentados, nem belos nem sedutores... E quando se tentava essa proeza, era difícil não chegar à sonolência. Poucos o conseguiram.
De outro lado, diante das narrativas oficiais, sempre ficava ao leitor/espectador atento a sensação de que estava diante de “uma história mal contada”, que faltava algo de carne e suor cotidiano, que aquilo que lhe apresentavam era um pouco demais de estórias a se alcochoar num tanto mínimo da história que havia. Afinal, as pirâmides não foram construídas pelos deuses, fossem eles realmente divinos ou meramente humanos; Hitler não matou seis milhões de judeus com as próprias mãos, mas com a ajuda de milhares de ocultos cínicos, hipnotizados ou sonâmbulos; o marechal-de-campo Erwin Rommel não avançou sozinho às casamatas no deserto da Líbia comandando centenas de tanques conduzidos por fantasmas; o Taj Mahal não se ergueu das areias de Agra num passe de mágica do imperador Shah Jahan, senão que pela força de mais de 20 mil homens, hoje esquecidos na mesma poeira em que repousa Mumtaz Mahal, a esposa favorita.
Retirar do pó essas sombras de ninguém e erguê-las de volta a um lugar visível é tarefa difícil, quase sempre inglória. Ouvi certa vez de um velho intelectual que era árduo e infrutífero mostrar a trajetória de anônimos, que zés-ninguém não contam, que é praticamente impossível contar a história de dispersos (a não ser como massas), porque aí ter-se-ia uma narrativa de aspecto geral em demasia, por isso mesmo desinteressante e inútil.
Luiz Humberto e Noemia demonstram com todas as letras, neste grande livro, que essa visão é equivocada. É justamente da saga dos ocultos, da história feita à margem dos mitos, que se constrói neste A Bailarina Empoeirada uma narrativa muito mais real, feita de seres reais, do suor de todos que caminharam pelas estradas tal como as bailarinas de que os Autores falam, vestidas de pó, de sol a sol, de lua em lua, em meio aos infortúnios de um dia macerado de lutas – tudo para erguer do quase nada uma cidade que deveria anunciar um novo dia: Brasília, a Capital da Esperança.
Este é  um trabalho de fôlego, construído pacientemente ao longo de mais 20 anos, mas é principalmente uma obra generosa para com seus personagens e para com o leitor. Aos primeiros reconhece o papel essencial que desempenharam e os retira do esquecimento; ao leitor, reposiciona com realismo o que esteve por tanto tempo escurecido pela sombra dos mitos e dos oportunismos; descama o verniz do conveniente e apresenta sem maquiagens, exageros ou heroísmos o nada glamuroso da vida ou desvela a realidade apenas de fancaria que a história oficial construiu ao longo do tempo.
Fez-se neste livro, com isto, uma História com agá maiúsculo, sob sol a pino, exposta às escâncaras.
A Bailarina Empoeirada tem virtudes que devem ser ressaltadas além disso: a linguagem, por exemplo, ou mais precisamente o estilo. Eu dizia a Luiz Humberto e Noemia que me era especialmente cara a escrita de vazão contemporânea que conseguiram manter ao longo de mais de 1.200 páginas: uma escrita ágil, algo literária e bem humorada mesmo em passagens de mero registro ou estatístico-onomásticas.
Aqui e ali, um acento lírico bem colocado, jamais em excesso, simples como devem ser simples as coisas boas; críticas como devem ser duras as coisas sérias; poéticas como devem ser leves as coisas belas. E aí sobre esse ponto eu disse quase tudo, em síntese. Mas há um outro aspecto excepcional, de fundo, relacionado à pesquisa histórica sempre meticulosa, exaustiva e determinada que realizaram. A quantidade de anotações e referências bem exemplifica o tamanho do esforço de concepção e construção do livro. Tal como a lida de seus personagens, é est’obra o resultado de um labor insano e oculto, erguido a partir de coisas mínimas: um anúncio de jornal, uma ata de fundação, um velho mapa ou catálogo retirado de um baú empoeirado, o depoimento de um mestre de obras, um guarda-noturno, um cantor de cabaré, uma bailarina empoeirada.
Em nenhuma outra literatura sobre a história da Capital Federal fica tão evidente o escomunal esforço de construir a cidade e, mais do que isso, de mantê-la como o centro das decisões políticas do país após a inauguração. Tantas e viscerais foram as investidas contra Brasília, inúmeros e poderosos os seus incontáveis inimigos, que vê-la hoje cercada de satélites e com mais de dois milhões e meio de habitantes é quase fruto de um milagre. Mas o trabalho de Luiz Humberto e Noemia abriu mão de aparições e optou por descortinar a realidade mais real: o trabalho constante, o desconforto brutal, os incêndios sucessivos, a infestação de ratos, a organização política hesitante, a primeira-missa, as primeiras escolas, os primeiros restaurantes, as cidades-satélites que nasciam, a via crucis do Núcleo Bandeirante, os falsos massacres, os primeiros clubes, os primeiros governantes (com seus poucos acertos e inumeráveis equívocos), o surgimento da imprensa, as dificuldades comezinhas da mudança dos órgãos públicos para o Planalto, o modo cômico (se não fosse trágico) como reagiam os que se viam obrigados a deixar as areias de Copacabana e as noites do Rio de Janeiro pela solidão do Cerrado e seu frio intenso.
E hoje estamos aqui, apesar de tudo, talvez contra tudo.
Penso que ao trabalho magnífico de Luiz Humberto e Noemia faltou apenas um capítulo, o que fizesse um contraponto entre a cidade horizontal, quase extraterrena e lírica, de há 30 anos e a que vemos hoje, tomada por concreto e prédios anódinos, sufocada pelos automóveis e espigões de vidro, seguindo uma trajetória sem rumo.
Mas essa já é uma outra história.
Alguém deve contá-la.

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