Trecho de "A Carta"

A noite dos casacos vermelhos



"Esperava-me naquele abismo de trevas a Indistinta, a que arrebata bons e maus. 
E aguardei que dissesses “faça-se a luz”, mas a luz não se fez. E fiquei sozinho e tive de enfrentá-la.
Ela esteve muito próxima... e o cheiro que exalava era o de flores mortas, murchas como ela.
Esteve a poucos metros de mim e se ­aproximava cada vez mais. Vi os cabelos ralos e lisos dela, os olhos dela, cujo brilho maior era refletirem um negrume profundo, uma escuridão vasta de tão densa. 
E a chamavam Morte.
Tive medo da treva infernal que vi orbitar ­naqueles olhos que traziam à tona o fundo do oceano. E pensei: É dessa maneira que ela devora os homens, atravessa a imensidão dos tempos e vence os espaços interplanetários.
Fechei os olhos e pedi clemência. 
Quando os abri, não a vi mais. 
Esfumara-se. Partira?
Então acordei: estava à margem dum braço qualquer do pântano. Cheguei àquele lugar distante talvez arrastado pelas águas.
Sangrava muito, um jorro quente saía do alto de minha coxa e tentei em vão estancá-lo com mãos enfraquecidas, mas mergulhei novamente nas trevas. 
Foi aí que vi uma outra mulher na escuridão. Só que era suave o seu rosto. Era agora leve a imagem que eu via, branda, suportável aos humanos.
Em noites seguidas, voltei a vê-la novamente, a nova mulher. O seu vulto aproximava-se e partia num mesmo momento, deixando o odor de frutas frescas e a sensação inexplicável de calor e frio, entre outras impressões difíceis de narrar, Elisa.
Houve instantes em que pensei estar já em outra dimensão e que as dores que eu sentia eram as alucinações de um condenado.
Alguém cuidou de mim apenas o suficiente para que eu sofresse e me recuperasse, ou que me recuperasse e sofresse.
Durante longos dias estive cego, mas não de uma cegueira total. Podia ver a choupana em que ­estava, a terra em volta, os porcos e cães que invadiam a casa nos dias de calor, o teto de palha encardida. 
Era a visão de um enfermo, confusa e cinzenta, mas eu via.
Só não consegui distinguir o rosto dessa mulher que me dava de comer e beber, trocava as bandagens que me cobriam as feridas e insistia para que eu ingerisse todas as noites a beberagem amarga que me ­devolveu a vida; aquela cujo rosto sempre ­apareceu a mim encoberto por um véu espesso, quase uma máscara; aquela que permaneceu em silêncio o tempo todo, um silêncio inabalável; que não se rendeu aos meus apelos para que falasse alguma coisa, qualquer coisa – e cuja mudez passou a ser a minha maior tortura.
Implorei aos céus que fosse você, Elisa."

Rey Vinas

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