Cor de cinza


Uma violenta chuva alcançou o lado norte da ilha no Dia de Finados.
Chegou repentinamente, e logo nas primeiras horas da manhã já transformara cada palmo do rancho num mundo cor de cinza.
Certa escuridão espessa e vaporosa tomou conta de tudo.
Nas coberturas de zinco, lá fora, a água produzia um ruído de batalhas, de trem avançando sobre trilhos. As árvores mais frágeis eram curvadas furiosamente pelo vento e suas cabeleiras, em frenesi, varriam o solo enlameado.
Era um dilúvio.
Ao meio-dia, um sopro mais forte do vento atirou longe metade do ­telhado da cavalariça, rebentando ripas e assustando os cavalos.
Ouviam-se seguidamente relinchos agudos que logo se perdiam no ar, tragados pelo barulho da tempestade.
Dudu ficou preocupada: os bichos poderiam ter se machucado. O espedaçar de paus e telhas tinha sido tão violento que seu som ainda ecoava. Tão longe e tão violentamente foram atirados os pedaços da cobertura envelhecida que na certa haviam atingido algum animal.
O mundo se acabava lá fora.
Era assustador ouvir os assobios do vento como facas agitadas a um palmo do rosto. Mas Dudu decidiu investigar o que acontecia nos barracões. Já não aguentava esperar a tempestade passar. Aquela ansiedade gelava na ponta dos dedos e deixava o coração pesado como chumbo.
Após vestir um grosso casaco de lona, ela se arremessou à fúria do temporal. E o fez com ímpeto, seguida de três dos rapazes da fazenda.
E dali a pouco já acompanhávamos quatro espectros num embate titânico com a ventania, abrindo cancelas, retirando dois a dois os cavalos ­assustados, levando-os com dificuldade para o único barracão que se mantivera ­intacto.
A chuva tornara-se tão implacável que, mesmo a curta distância, já não era possível enxergar senão vagas sombras de Dudu e dos rapazes, envolvidos naquele jorro pesado de água. E dentro em pouco só nos restava diante dos olhos, no ar asfixiado, a pincelada escura daquela agitação, como se os espectros duns seres extraterrenos se agitassem em câmera lenta, as crinas e as caudas riscando lentamente a paisagem dissolvida na escuridão, imersos numa neblina densa de sonho.
Homens e animais nada mais eram que massas disformes a se movimentar pesadamente numa câmara de vapores.
Minutos depois, todos retornaram, ensopados e – o mais curioso – tristes. Marina perguntou se algo havia acontecido aos animais.
– Não, não... só uns prejuízos com a estrebaria – respondeu, esquiva, a Dudu, seguindo apressada para o quarto dos fundos.
– Podem ir – ela disse fracamente antes de cruzar o corredor. E dois dos rapazes voltaram de imediato à chuva torrencial para dar início a consertos inadiáveis.
Levaram serrotes, martelos, pregos e algumas ­tábuas. Mas seguiram pesarosos, cabisbaixos. Retornaram à tormenta, não ­sabíamos muito bem por quê, como quem volta ao inferno sobre os próprios ­passos.
Um inferno de água.
A tempestade ficara ainda mais forte. E num instante já não era possível mais percebê-los sequer como fantasmas, sob a pesada cortina que desabava sem cessar. Também já não se ouvia o martelar furioso nas ­tábuas, não mais.
Voltamos à sala sob profunda ­cisma.
Dudu retornou também, com roupas enxutas e nuvens nos olhos, um semblante trágico sob o cabelo desgrenhado. Calada, olhava pela janela o céu furioso, raios e trovões; ouvia com frêmitos que só eu percebia o relinchar dos cavalos agitados.
– Os rapazes não retornaram, devem ter seguido direto para os alojamentos – disse a Dudu após um longo tempo, pouco convicta, porém, recuando com passos de ancião até a poltrona.
Branca e Diana tomaram-lhe as mãos enregeladas.
Marinho ofereceu-lhe uma xícara de chá, mas ela recusou com um gesto mecânico, o olhar fixo na tarde pavorosa.
Ficou assim até que, muito tempo depois, envolvida pelas sombras da noite, a tempestade abrandou, calando-se pouco a pouco, até cessar definitivamente. Mas imaginamos que havia deixado um rastro de ruínas.
Só então Dudu notou que a casa principal também fora atingida, no lado oeste. Uma velha árvore de raiz maltratada não suportou o ar pesado a lhe pressionar o tronco e desabou, atingindo a lateral da cozinha que abrigava os xaxins, os belos xaxins de Dudu, tão bem cuidados, destruindo-os completamente.
A dona da casa não pôde conter as lágrimas, mas preferiu não ver as plantas esmagadas e se recolheu, pálida e trêmula, ao quarto de dormir. Caminhava com dificuldade, os ombros arqueados, os ­chinelos de lã arrastando-se como quem arrasta atrás de si correntes.
Os estragos só iriam ser vistos pela manhã. As montarias ­haviam ­quietado, enfim. Era hora de dormir, de pedir a Deus por dias bons, clemência.
Mas a alma estava em convulsão.

*
Os primeiros raios do dia permitiram contemplar a devastação: a horta fora dizimada, sulcos profundos marcavam o terreno, imensas poças d’água. As plantas mais sensíveis haviam sido arrancadas da terra por mãos furiosas. Patos, galinhas e marrecos jaziam sob a terra caída do morro acima do aviário. Tudo o que se esperava, mas...
... os cavalos não estavam no barracão!
Dudu correu à cavalariça, o coração aos ­pulos.
Quase anteviu o que iria deparar.
Lembrava ­nitidamente o dia anterior. Era como se visse aquela mesma cena naquele momento: na tentativa de levar os cavalos para o barracão principal, Tornado, um robusto alazão, precisou ser chicoteado várias vezes, mas ainda assim resistiu por longo tempo a sair da cavalariça, que ficara em pedaços.
Dudu assistiu a tudo, dolorida.
Um belo cavalo, forte e meigo, o Tornado.
Mas era preciso tirá-lo de lá a qualquer custo.
O telhado estava prestes a desabar.
Enquanto um dos rapazes arrastava Tornado com violência, sob o jorro da água em profusão, o outro estalava seguidamente o chicote no dorso do belo animal, que se contorcia e agitava em fúria as patas dianteiras, sem compreender.
Foi então que Dudu acreditou ter visto, de relance, um brilho mau e furtivo nos olhos dele, o brilho indefinível de um raio flamejante. E nessa hora ecoou longe o som pesado dos fogos duma artilharia: uma sucessão desordenada de raios e trovões.
Dudu estremeceu. Emergiu das recordações sob o susto provocado pela lembrança daquele urro colossal que despedaçou a tarde e se perdeu atrás das cordi­lheiras.
Refeita do horror que lhe provocavam esses pensamentos, ela caminhou com esforço. Vinte passos ­adiante, encontrou a porteira derrubada, tábuas e pregos espalhados pelo ­caminho, martelo e serrote afundados na lama negra, negra e com reflexos de ­cobre.
Um emaranhado de cascos havia deixado pegadas fundas e sangrentas na serragem enlameada da estrebaria.
A mulher pôde ver ao fundo o vulto dos rapazes, o que restara deles. Pisoteados, encolhidos contra a parede. Duas pálidas estátuas. As mãos paralisadas à frente do peito deixavam adivinhar-lhes a agonia da vã defensiva.
Dudu ficou petrificada. Uma náusea ácida e pastosa subiu-lhe do estômago à boca e intensificou uma já adormecida dor de cabeça.
Dizem que os mortos guardam na retina a última das imagens que presenciaram. E naqueles olhos opacos e sem vida ela pareceu assistir ao avanço dos cavalos congelar naquelas órbitas enormes.
Era quase possível adivinhar o exato instante em que, sob a investida dos cavalos irados, o pavor paralisou, naquelas faces rígidas de pânico, uma legião de penas, uma infinidade de gritos.


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Este conto foi originalmente publicado no livro "Valsa para Edgar Furioso", à venda na Amazon.com em papel e em e-Book.





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