O que dizer num mundo em silêncio


Toda escrita pressupõe uma “leitura” anterior. E será tanto mais rico o texto quanto mais eficientemente o indivíduo interpretou as coisas que leu ao longo da vida.
Vale advertir que aquilo que se lê não são apenas as palavras numa página de livro ou numa tela de computador: o mundo todo pode ser “lido”, as coisas em volta podem ser lidas, até uma pedra pode ser lida, embora num primeiro momento essa afirmação possa parecer um tanto despropositada.
Tudo fala: um gesto, uma carícia, um aceno, um aro de bicicleta, um adesivo no armário, um sofá na sala. Cada coisa é a expressão de uma subjetividade, cada objeto denuncia uma escolha, feita por um sujeito pensante e sensível – e possui uma história.
A percepção de que as mínimas coisas do mundo, observadas e tocadas pelo homem, falam, equivale a descobrir que na maior parte de nosso tempo vemos sem ver, ouvimos sem ouvir.

Sem ver, sem ouvir: um problema para a concepção do texto


Ao longo de sua vida, um homem caminha sucessivas vezes a um mesmo lugar – o lar, o clube da vizinhança, a escola dos filhos, a casa dos pais – sem dar às vezes importância ao que há em volta.
Existe ali uma árvore, um banquinho de praça, um cão de rua, um vendedor de sorvetes para os quais o indivíduo dirige o olhar com absoluta indiferença.
De repente, ao caminhar ao lado de alguém por essa mesma rua que o leva todos os dias para casa, ouve subitamente: “Que bela samaumeira, forte, bem talhada, parece uma estátua!”. E então finalmente percebe como é mesmo bela a árvore, aquela árvore cotidianamente atravessada em seu caminho e que ele sequer sabia se tratar de uma samaumeira.
A questão é que aquele homem via sem ver. Porque ver implica cumplicidade com as coisas vistas, e o nosso personagem não possuía com a bela árvore outro relacionamento que não fosse o da mera passagem pela rua. Faltava-lhe o olhar verdadeiro: aquele que desvenda, aquele que perscruta, aquele que é humano e, no fim das contas, consagra um gesto de amor.
Perdeu o ser humano progressivamente a sensibilidade para o que é próximo e mínimo, num mundo altamente tecnológico em que tudo é espetáculo, agilidade e pressa. Muitos têm-se esforçado para retornar a um instante original em que seja possível recuperar a substância para além da aparência, porque, perceberam, o modo de vida que adotarmos hoje será determinante para o design do humano que se pretende deixar para o futuro, para o homem do amanhã.
Por isso é tão difícil a quase todo mundo escrever/dizer coisas substanciais: a essência das coisas exige aproximação, observação lenta, paciência e escapa aos olhos do imediato. Apenas com o imediato, fica-se na superfície de tudo, sem aprofundamento, sem cumplicidade.
O texto ou o que quer que se diga que resulte dessa ausência será algo descarnado e sem cor, pois lhe faltará a carne e o sangue do pensamento reflexivo; será, assim, o subproduto secundário de uma fuga constante, reflexo de um olhar que vê não vendo. Sem ver, não há o que dizer, porque nada foi notado e, portanto, não existe. Como se pode falar de algo inexistente aos nossos olhos?

Ver e viver

As realizações humanas têm-se revelado cada vez mais irrealizações. Devora-se tudo, sem partilhar das delícias. Quer-se o agora, sem tempo para o amadurecimento.
Esse comportamento, por incrível que pareça, influencia na produção do texto, na fala do dia a dia, no diálogo com os outros. Sem amadurecimento das ideias e das percepções, sem reflexão sobre o que se vê e se ouve, sem o questionamento daquilo que se lê, resta a repetição de frases, a falta de imaginação (porque a imaginação se nutre do afeto pelo que nos cerca, do gosto pelos detalhes, da consciência do existir). A consciência é em última análise aquilo que permite ao homem distanciar-se das coisas para melhor integrar-se a elas.
Para que o texto flua exteriormente, na sua realização sobre a página em branco, na tela do microcomputador, é necessário que de alguma forma já esteja estruturado em nós, em nosso universo psíquico.
Só é possível expressar com verdadeira voz aquilo que se conhece e se percebe, aquilo que representa para o ser humano uma vivência. Quanto mais vivido, mais vívido. Então, a primeira tarefa de quem pretende escrever deve ser a de perceber as coisas, os seres, as ideias, as manifestações, os sentimentos. Só assim a construção do texto será viável e humana, só assim se chegará a uma real atividade de escrita.
Perceber as coisas consiste em primeiramente senti-las, sentir de verdade, aproximar-se delas com o olhar da curiosidade, conhecer-lhe a origem, a evolução, a finalidade.
É preciso aprofundar-se nas coisas que se vivencia, e isso exige manter com tudo o que nos cerca múltiplas experiências.
Beber um bom vinho é uma forma de experimentação; saboreá-lo já é outra experiência, profundamente distinta. Pode-se beber de um só gole, mas não se pode saborear desse mesmo modo, sem buscar as minúcias, as características, as peculiaridades. Um vinho tem para além do líquido um aroma (na verdade aromas), uma cor, no fundo uma transparência ou opacidade, uma temperatura... Conhecer um vinho, portanto degustá-lo, significa poder descrevê-lo em detalhes, interpretar o que ele representa a cada um emocionalmente, dizer da sua existência profunda, discorrer sobre a sua história, relacioná-lo com outros de sua cepa. Só aí realmente conheceremos, mas ainda assim talvez menos do que deveríamos. E isso vale para tudo.
Obviamente não será possível conhecer dessa maneira todas as coisas, mas para um escritor, principalmente, é preciso mergulhar em algumas delas. Um escritor precisa conhecer livros e uma infinidade de textos; precisará também conhecer minimamente histórias, culturas, cidades, gentes – saber de modo mais intenso sobre o homem e suas ansiedades.
Alguém dirá que é possível escrever sem absorver tudo isso. Sim, é verdade. Mas quase sempre, sem observação, profundidade e erudição (não eruditismo), o texto sairá raso.
É possível escrever grandes textos sobre a existência, o amor e as experiências pessoalíssimas sem ter feito a leitura de muitos textos convencionais na vida. Mas um texto admirável nesse sentido só será feito por alguém que realizou ao longo de sua história pessoal, no mínimo, “leituras” constantes e percucientes do mundo em volta, das coisas que o cercam – uma leitura criteriosa, atenta e sincera do que se passa em torno. Porque escrever exige ir fundo nas coisas, sair do remanso da superfície de uma vida rés ao chão. E para isso é necessário começar a perceber como é mesmo bela a samaumeira da casa da esquina.

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