Um país sem Hilda Hilst

Eu sempre me fascinei com o matemático indiano Srinivasa Ramanujan. Ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações. Na poesia também é assim. É uma espécie de exercício do não dizer, mas que nos dilata de beleza quando acabamos de ler um poema.



Hilda Hilst morreu em fevereiro de 2004, cinco dias antes do meu aniversário, de falência múltipla dos órgãos, depois de uma queda em que fraturou o fêmur. Aquele foi um péssimo fevereiro. Escrevi um artigo nesse dia, desolado com a indigência não propriamente literária, mas cultural deste país.
Os telejornais daquele dia, fixados em celebridades fúteis, sequer conseguiram dar a entender à população que o Brasil perdia um de seus expoentes, uma pessoa das mais dignas, uma artista singular. Se não fossem os cadernos de arte dos principais jornais impressos, o episódio receberia quando muito uma locução em off.
Reproduzirei aqui o que afirmei à época (e dou início neste momento a um tributo tardio: um conjunto de postagens e análises críticas sobre essa autora e sua obra, daqui até o aniversário de sua morte). 
Começo relembrando que os jornais daquele dia, como era de se esperar, trouxeram à farta a biografia e alguns poemas de Hilda; disseram da grandeza de seu texto, de sua beleza quando jovem, de sua desistência de quase tudo em favor da literatura, de sua solidão, de sua dezena de cães, de sua bem-comportada loucura.
Mas eu preferi comentar um outro aspecto de sua vida, um aspecto transversal, digamos, ligado a uma questão incômoda a mim e certamente a todos os que admiravam as inegáveis qualidades da escritora que ela era: se era magnífica a sua escrita, por que tão poucos liam Hilda?

 

Um "grupo de eleitos"
Não é difícil constatar que a liam basicamente escritores e literatos, alguns poucos especializados nesse negócio de texto literário.
Temos, malgrado, de constatar que Hilda era a escritora de um "grupo de eleitos", num sentido infelizmente elitista e perverso, resultado de nossa condição de país periférico, dependente e quase que apenas semi-alfabetizado.
Porque para ler Hilda de verdade é preciso conhecer minimamente a literatura e seus meandros, ter pelo menos lampejos de erudição (não aquela erudição besta) para perceber, mesmo que intuitivamente, a mestria de sua arquitetura verbal, o poder de sua linguagem, de seu poema – um desafio quase intransponível a nossa estatística de mais de 30 milhões de analfabetos reais (inclua aí, por favor, os analfabetos funcionais, aquela legião que não consegue entender um parágrafo com mais de duas frases) e mais cerca de 60 milhões de brasileiros declaradamente incultos (que não estão nem aí para essa coisa chamada literatura e suas adjacências).
Resumindo: para ler mesmo Hilda, precisávamos de um povo culto (e alerto mais uma vez que falo aqui não da cultura de perfumaria, voltada à inflação dos egos, mas da cultura como valor espiritual e de sensibilidade). E apesar de nossa vocação para a beleza, de nossa capacidade inata para o deslumbramento diante dos signos, da fantasia e da surpresa, estamos cada vez mais distantes, como povo, de compreender o valor de uma escritora da dimensão de Hilda.
Estamos por demais ocupados, como nação, em exportar bananas, madeira e roupas de praia, em dar solução paliativa a problemas provisórios – que sem dúvida se tornarão crônicos, porque nos tem faltado o sustentáculo de um país promissor: um povo verdadeiramente educado, uma juventude não superficial, capaz de lidar com linguagens complexas e dotada de sensibilidade.
Mas essa mesma juventude é hoje incapaz de ler Hilda. Com raríssimas exceções, os jovens não a suportariam: não foram preparados para isso.


Poemas em silêncio
Lembro-me de que, certa vez, pediram-me que "declamasse" um poema num encontro de bibliotecários em Brasília. Eu "li" estes textos de Hilda:

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.
 
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.

O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:

"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.

E ainda:

Dizeis que tenho vaidades.
E que no vosso entender
Mulheres de pouca idade
Que não se queiram perder

É preciso que não tenham
Tantas e tais veleidades.
 
Senhor, se a mim me acrescento
Flores e renda, cetins,
Se solto o cabelo ao vento
É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes
E a boca fresca e rosada.
E a vaidade só consente
Vaidades, se desejada.
E além de vós
Não desejo nada.

(Trovas de muito amor para um amado senhor)

Estávamos próximos do fim da Era FHC, pelo menos achávamos isso.
Nutríamos a esperança de que uma nova sociedade finalmente começaria a ser construída em função de um novo quadro de valores.
Os poemas de Hilda, naquele momento, soaram como um estandarte, uma unção.
Um silêncio comovido apoderou-se do auditório e eu percebi, pela primeira vez em toda a minha convivência com aquele texto complexo, que a mensagem de Hilda havia sido captada intensamente por uma plateia de certa forma comum ou pelo menos não especializada.
E me perguntaram comovidos: Quem é essa escritora?
Há décadas meu pai me dizia que nada há que possa se opor à aliança entre a competência e a ternura.
Hoje eu somaria a esses elementos a espiritualidade.
Somente quando realizarmos o projeto dessa trindade não haverá quem nos derrote.
E tal como Hilda, teremos alcançado alguma forma de sublimidade.

(Hilda Hilst)

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