A Canção de Lawino – de Okot p'Bitek



Há duas décadas encontrei entre amontoados de jornal um recorte de poema do inquietante autor africano Okot p'Bitek. E assim, por acaso, a Canção de Lawino foi o meu passaporte de entrada a esse universo incômodo e fascinante que é a literatura feita no continente-berço de nossos antepassados. Desde então tenho recolhido fragmentos (são pedaços de texto na maioria das vezes) da poesia africana, quase sempre dolorosa (como poderia ser de outra maneira?), dura, espiritual, profunda porque viva
É uma literatura difícil de encontrar, literalmente, mas essencial – se quisermos pensar o ser humano à margem dos fru-frus da vida ocidentalizada, consumista, vazia e superficial em que (no mais das vezes) mergulhamos.



Okot p’Bitek nasceu em Gulu, a maior cidade acholi de Uganda, em 1931. Ainda muito jovem, começou a escrever. 
Em 1958, após um torneio de futebol (ele jogava na seleção de seu país), permaneceu na Inglaterra a fim de continuar os estudos. Graduou-se em Educação pela Universidade de Bristol e em Direito pela University College of Wales. 
No começo dos anos 60, estudou Antropologia Social em Oxford, mas voltou a Uganda para ensinar na Universidade Makerere, em Kampala. Em 1967, foi lecionar na Universidade de Nairóbi. 
Morreu de uma infecção no fígado em 1982. 
Em 1953, p’Bitek escreveu sua primeira novela, Lak Tar (Dentes Brancos). Em 1969, a “Canção de Lawino” foi publicada. 
Escrita no estilo de uma tradicional canção acholi, é o lamento de uma esposa sobre seu bem-educado marido, que rejeita as tradições acholis, substituindo-as pelas "ideias" do Ocidente. 
Muito da raiva de Lawino é direcionada à amante do marido. 
Assim, na “Canção de Ocal” o marido responde a Lawino, depreciando os valores africanos e enaltecendo as virtudes e os ideais da sociedade europeia. 
O debate entre Lawino e Ocal reflete a discussão que ganha espaço cada vez mais na África sobre as implicações da adoção da cultura e dos ideais ocidentais. 
Outros trabalhos, incluindo “A Canção de um Prisioneiro” (1971) e a “Canção de Malaya” (1971), foram escritos nesse mesmo estilo. 
Okot p’Bitek tem sido criticado por escritores como Ngugi wa Thiong’o por não “enfocar adequada e profundamente as causas dos problemas africanos”. 
Okot, porém, acreditava que seu trabalho, como toda boa literatura, tinha “profundas raízes humanas”.


Canção de Lawino


Meu marido leu muito com os Brancos
Leu tudo, em profundidade.
É tão instruído quanto os Brancos.
Mas a leitura o destruiu,
Separou-o de seu povo.
Ele é como um tronco sem raízes.
Ele objeta tudo o que é acholi
E diz
Que os costumes dos Negros
São Negros
Porque seus olhos rebentaram.
E ele usa óculos pretos
E em sua casa há uma escuridão de floresta!

A casa de meu marido
É uma floresta de livros!
Alguns deles são imensos,
Grandes como as árvores tido.
Alguns deles são velhos,
Com suas cascas se soltando.
E têm cheiro forte;
Outros são finos e moles
E outros têm dorsos
Duros como o tronco de rocha
Das árvores poi.
Alguns são verdes,
Outros rubros como sangue,
Outros pretos e oleosos
Com dorsos que brilham
Como a serpente venenosa ororo
Enrodilhada em cima de uma árvore.
Alguns têm figuras no dorso,
Rostos de homens e mulheres que parecem bruxos
Barbados, orgulhosos,
Com grandes barrigas,
Com faces encovadas e ares
Rabugentos, vingativos,
Figuras de mulheres e de homens
Há muito tempo mortos.
A mesa de meu marido é recoberta
De uma pilha assustadora de papéis,
Como plantas gigantescas
Crescendo nas florestas
Ou a árvore kituba
Que mata as outras árvores,
As sufoca.
A casa de meu marido
É uma enorme selva de livros.
Ela é escura, tudo nela é diluído,
Um vapor quente, espesso,
Envenenado,
Ergue-se do chão
E se mistura à penetrante umidade
Do ar
E às gotas de chuva que se juntam
Nas folhas.
Sufoca-se
Quando se fica lá por muito tempo,
Arruína-se a língua e o nariz,
A ponto de não se poder mais
Sentir o refrescante odor do óleo
de sésamo
Nem o gosto do malakwang.

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