Uma das pérolas da Amazônia




Há 23 anos estive em Bragança, no Pará, para falar de literatura, em razão de minha participação no projeto O Escritor na Cidade, da Fundação Biblioteca Nacional, idealizado pelo poeta Affonso Romano de Sant'Anna. 
Fui acompanhado de um conjunto de profissionais, entre eles Elza Lima, uma das grandes fotógrafas da Amazônia, e lá ficamos por dois dias de intenso mas fascinante trabalho. 
Ao retornar a Belém, publiquei na primeira página do caderno de cultura do jornal O Estado do Pará o texto que aqui reproduzo. Infelizmente não consegui recuperar as belas fotos de Elza que o ilustraram (há tanto tempo estamos distantes...), mas me permiti capturar na web algumas imagens dessa simples, bela e acolhedora cidade paraense, divulgadas pela prefeitura local. 


Bragança




Sob um sol de quase quarenta graus, ela diz (olhando na distância o porto, casas e pontes) que estes mais de três mil quilômetros quadrados da cidade de Bragança já foram berço dos tupinambás, dos caités e dos apotiangas. “As almas desses índios vivem hoje nas sombras, ­repousam em cada uma destas pedras. Vê!” – ela diz. O olhar mais uma vez desce ao tijuco e aos pedregulhos do porto, lá embaixo: “Tudo isto some com a maré cheia – a pedra, o tijuco –, ficam as almas dos índios submersas”. 
A água, elevando-se de seis a oito metros, de tempos em tempos sobe ao cais. Chegam nessa hora velas de todas as cores, embarcações de formas improváveis que para lá tombam, sopradas pelos ventos alíseos. Chegam também da costa marítima – ela diz e a voz embarga – os pequenos “latinos” e os “barbados” carregados de peixe fresco, exalando os odores inconfundíveis do mar aberto.



Bragança, ligeiramente inclinada para o rio Caité, mesmo após as torrenciais chuvas de inverno mantém suas ruas sem alagados. As águas das piores tormentas são sorvidas vorazmente pelo Caité, porque não têm como estagnar. Obrigadas a correr numa só direção, rendem-se aos pés do volumoso rio e findam, água tragada pelas águas.
Curvada pelos quase sessenta anos, a Moira toma minha mão e caminha: ao norte, o Atlântico; ao sul, Ourém; a Leste, Augusto Correa; a oeste, Capanema. Esses, os limites geográficos desta terra úmida. Ela diz, e gira em círculos: “Estamos no centro da pérola. Somos A Pérola do Caité. E só Deus sabe o que poderíamos ter sido um dia, não fossem os franceses, os portugueses, os que aqui chegaram a 200, 300 anos, para submeter, para colonizar. Só Deus sabe...”. 

Xavier Fernandes afirma que o nome Bragança é de origem portuguesa. Há os que dizem que o nome vem de “benquerença”, poético, por sinal. 
O primeiro núcleo colonial na região, a Vila de Vera Cruz do Gurupi, foi instalado à margem desse rio em 1627, fundado por Francisco Coelho de Carvalho. 
“Ele doou as terras colonizadas a seu filho, Feliciano Carvalho, mas a metrópole não lhe reconheceu o ato. Felipe III fez, então, nova doação das terras ao herdeiro do governador geral, Gaspar de Souza. Álvaro de Souza, portanto, foi o primeiro donatário da Capitania do Caité, e é considerado o fundador de Bragança, em 1754”, comenta a Moira. A fala, nesse momento, é trêmula. 
Ela toma novamente a minha mão e diz, num gesto atávico, crepuscular: “Antes disso, o então povoado do Caité foi instalado à margem direita do rio de mesmo nome. Depois, talvez para melhor localização, foi fixado na sua margem esquerda, num lugar que ainda hoje é chamado de Vila Qui-era (ou Cuera). Só em 1754 é que o lugar recebeu o nome de Nossa Senhora do Rosário de Bragança". Ela diz, mão na minha mão. E num instante estamos na Vila Qui-era.
Ali, num silencioso quase princípio de tudo, abro os braços às rajadas de vento e à solene unidade entre natureza e homem. Elza está ao lado, máquina fotográfica em punho; próximo, um barco repousa, ­manso, nas águas calmas; o tijuco espalha-se, uma lama escura, pesarosa e abençoada. 
“Vila Qui-era, paz, dádiva aos olhos. Vê!”, diz a Moira. A beleza, estranha aos nossos afetos, é mais que natural para a gente do lugar. Sentadas nas portas dos casebres humildes, de taipa e barro batido, com canecas de açaí, as crianças provocam nossos gestos mais puros: descer até o tijuco de pés descalços, afastando as pedras; comer ­pitangas, com a sensação de ser erva, coisa silvestre, flor... de ser gente.
Há ainda, além, a solitária igrejinha. Está fechada. 
"Quando se entra pela primeira vez numa igreja, deve-se fazer um pedido, que ele será atendido", recomenda a Moira. Mas somos privados dessa mística. 
A igreja descansa. “Deus está em volta”. Sentimos?


Em Ajuruteua, a poucos quilômetros da cidade, uma vez mais a sensação de corpo atirado ao infinito: as águas chegam à praia e esplendem ao sol de abril.
Elza não se contém, fala do sublime; a máquina fotográfica vai de um ponto a outro, quer captar o inatingível, talvez o que está além do olho. 
A noite não tarda a cair. 




A Moira ri de nossas afoitezas diante do encanto.
Um menino chega, gestos estudados, curiosos, um pequeno rei sublime. Elza segue-o com a câmera. Fotografa-o num giro de corpo, movida por instinto, quando a luz do sol já não passa de uma nesga de claridade pronta a ser devorada pelas sombras. A Moira ri.
Dentro do carro, Elza lê um trecho de Goethe:

“Mas o certo é que os sentimentos da juventude e dos povos incultos, com sua determinação e suas amplas ­extensões, são os únicos adequados para o sublime... A sublimidade, se há de ser despertada em nós por coisas exteriores, tem de ser informe ou consistir de formas inapreensíveis, envolvendo-nos em uma grandeza que nos ­supere... Mas assim como o sublime se produz facilmente no crepúsculo e na noite, que confundem as figuras, assim também se desvanece no dia, que tudo separa e distingue; por isso a cultura aniquila o sentimento do sublime”.

Despedimo-nos. A Moira segue lentamente, acena e ri. Ri de nossas afoitezas, de termos perdido tanto no alvoroço das grandes cidades, de termos perdido dentro de nós os nacos da sublimidade.


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