Michael Jackson: Black or White?







Nem branco nem preto.
Michael Jackson foi um ser humano cujo corpo seguiu um destino artificial. 
As últimas notícias do astro após sua morte revelaram um artista fragilizado e doente, quase cego, sob forte pressão emocional e profissional, sentindo dores físicas insuportáveis.

O poeta e ex-titã ­Arnaldo Antunes trocou ­certa vez, há exatos 20 anos, dezenas de farpas com o jornalista Sérgio Sá Leitão, da Folha de S.Paulo, acerca da controvertida figura do pop-star Michael Jackson, cujo disco ­Dangerous acabava de ser lançado (1991), após veiculação internacional do polêmico clip ­“Black or White”.
Sá Leitão e Arnaldo retornavam à velha discussão “branco ou ­preto” a que inevitavelmente chegava ­quase todo debate em torno da figura de Jackson depois que o cantor-compositor decidiu fazer sucessivas operações plásticas e um tratamento para clarear a pele, transformando-se numa espécie de homem de cera ou híbrido mutante de características futuristas. No meio disso tudo, discutiram também, para variar, a música de Michael.
A polêmica se iniciou com um artigo de Sá Leitão no Folhateen de 9 de dezembro daquele ano, no qual o jornalista afirmava que Michael tornara-se “o eunuco do pop”, pois ao perder a cor teria perdido também a identidade. 

“Não se trata de uma questão racial. Brancos ou negros, todos constroem para si filmes que são o rosto de cada um, a máscara pela qual somos reconhecidos”, escreveu Sá Leitão.
Quase um mês depois, no dia 7 de janeiro de 1992, Arnaldo Antunes publicou na Ilustrada um artigo em que definiu como genial a música de Jackson e acusou como “fruto do ódio” os ataques que o cantor vinha sofrendo baseados na opção de MJ de abandonar as características físicas negras de sua origem.



Estupidez

O ex-titã chamou de “estupidez” a atitude dos que abandonavam a possibilidade de uma discussão mais séria sobre a música de Michael e usavam as mudanças físicas do cantor como escudo para não comentar aquele “disco maravilhoso” (Dangerous): “Brancos sempre puderam parecer mulatos, bronzear-se ao sol, fazer permanente para endurecer os cabelos. Agora o negro Michael Jackson entregar seu corpo à transcendência da barreira racial desperta revolta, reações, protesto e aversão”.
Sá Leitão rebateu esse argumento vigorosamente, dizendo que ­Arnaldo Antunes lera seu artigo mas não entendera a mensagem e acusou o ex-titã de achar que Jackson era “um arauto de Abolição e mártir do relativismo”.
À época, escrevendo sobre a polêmica em torno de MJ, eu afirmara: “Nem gênio, nem disco maravilhoso. Nem estéril, nem ­medíocre”. E recebi porrada de um lado e de outro.
O que pretendi dizer então, e certamente falhei, era que Jackson e Dangerous estavam – e ainda estão – acima das reduções da arte e da criação a categorias simplificadoras que levam à exaltação ou à condenação, porque esse tipo de análise é estéril e não aponta para o essencial: o fato de que Jackson mudou não apenas o modo de fazer e produzir música, como também transcendeu os limites conceituais, éticos, psíquicos e biológicos a que estamos (a maioria) submetidos como seres humanos. Quase toda psicologia tem falhado ao tentar explicá-lo e a fumaça do sensacionalismo até agora não ajudou muito a ver o “homem por trás da máscara”. Também não ajuda a compreender esse fenômeno uma percepção exclusivamente ­moralista de seu comportamento e de sua arte. É preciso mais, e talvez só o tempo e a distância consigam mostrar o que ralmente ficou, o que verdadeiramente importa na música e no artista, para além do mito.



Ser biônico

Muito depois de Dangerous, Michael continuou sua trajetória de ser biônico, que já não era preto, mas também não chegava a ser branco, antes quem sabe quase tirante a verde-pálido, e esperei por mais de uma década que chegasse a incolor, para que a discussão se tornasse outra, a ponto de realizar diante do público o grande desejo do artista de se tornar um camaleão ou uma pintura, desde que continuasse criando e dançando maravilhosamente.
Michael era no fundo um travestido (de certa forma como todos nós, embora disfarcemos com mais competência e sutileza a nossa real aparência, para não matar a plateia de susto com o horror do fundo fosso de nossa alma). Mas travestidos todos somos, tal como ele, de uma forma ou de outra, como resume o pensador francês Jean Baudrillard no emblemático artigo "Somos todos transexuais".
Agora se sabe mais ­concretamente que a vida do astro era uma m* com adrenalina. E fica difícil compreender como alguém com tanto dinheiro (embora devendo outro tanto) se alimentasse praticamente de frango com arroz. (Comer era para ele um sacrifício desde a infância, um ato que ele executava somente para sobreviver, como um ente esquisito que, na hora em que faltava o ar, pedia só um balão de oxigênio.)
É curioso notar como todos os que foram íntimos de Michael o consideravam a “pessoa mais gentil” que conheceram, mesmo sua ­cozinheira particular, saída daqui destas plagas (e que tentava com pratos da culinária ­brasileira, de que ele razoavelmente gostava, convencê-lo a comer um pouco mais do que sombra e vento).
Também é inexplicável que uma personalidade como ele se cercasse de profissionais tão incompetentes, a exemplo daquele médico tosco, Dr. Murray, que lhe administrava doses cavalares de propofol (a droga anestésica perigosíssima e hospitalar que veio a matá-lo) sem nenhuma precaução, nenhuma segurança.
Michael bateu todos os recordes como artista, vendeu mais de um bilhão de discos e foi considerado a pessoa mais famosa do mundo em todos os tempos. A apresentação de uma biografia de MJ insinua que qualquer ser humano que tivesse a fortuna, a fama, o talento, a fragilidade e a trajetória de vida (sem infância) desse astro não teria como deixar de se tornar o esquisitíssimo e infeliz, mas genial, absolutamente genial, Michael Jackson.



Divisor de águas

Era uma tarde de verão de 1979. Lembro que ainda assim fazia um vento frio e no horizonte umas nuvens cor de chumbo começavam a se formar. Ouvíamos no som do carro, parado e de portas abertas ao lado das mesas do bar em que estávamos, o último disco (de vinil) – extraordinário – de Chico Buarque. O dono do bar se aproximou e disse, no maior sarro com a nossa cara: Querem ouvir música de verdade!? Era uma pergunta afirmativa. E aí colocou pra tocar na vitrola potente (de som muito límpido) o Off the Wall, quinto disco de MJ, mas o primeiro em que ouvíamos o menininho do Jackson 5 cantando como gente grande. Era a levada pop “Don’t Stop ‘Till You Get Enough”, com aquela sequência de trompetes impagável. Foi uma porrada. Metade disse que era genial e a outra metade discursou sobre o imperialismo americano na música e blá-blá-blá (uns idiotas). E o velho Pedro, dono do bar, um amante incondicional de jazz, sentenciou: “A música no mundo vai ficar dividida entre antes e depois desse rapaz”.
A partir daí, MJ virou uma febre juvenil dançante. E isso durante um tempo obscureceu a fantástica ­música que ele fazia e as inovações sonoras que ele perpetrou, transformando aquilo que todo ­mundo pensava ser o limite da canção. Porque, afinal de contas, será disso que o planeta irá falar sobre Michael Jackson depois que toda a tragédia pessoal desse astro e os escândalos de sua vida não mais interessarem a uma plateia sedenta do sangue das celebridades.

Comentários

  1. Genialidade! Eis o adjetivo mais apropriado para o Astro Pop MJ. Ouvido absoluto para música, sem saber tocar muito bem nenhum instrumento. Voz Perfeita que muitos não observavam por estarem observando o exímio Dançarino que nunca estudou Dança. E antes de MJ a música negra era vista com preconceito. Depois de MJ, outras gravadoras começaram a aceitar Artistas Negros. Até então só a Gravadora Motown tinha essa prerrogativa, para uns, ou obrigação, para outros: promover Cantores Negros.

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