Dois poemas sonoros de Ters



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Incluí em meu livro Ters (Terra) dois poemas complexos, cujos títulos são Deserto e Poema (simplesmente), de construção densa, mas emocional, um tanto amargos, reconheço. 
Bela costuma insinuar que são poemas para poetas, o que significa dizer que são difíceis de ler (para as pessoas normais, que não erguem todo dia seus altares à falsa sacralidade da literatura). 
Mas gosto dos poemas, me satisfazem como arquitetura de escrita, como elementos de sonoridade. 
Ei-los:

Desertos


Eras todo o deserto,
espaço nu e corroído,
o dia ardendo sua sapiência,
sol que despistava em chama
e raio
sua geleira e inverno.

Eras sobretudo a falsa mão,
a que não pôde
permitir-se o toque, o alívio,
o canto solto e alegre
nas campinas nuas;
a que riscou no avesso
de manhãs não claras
o curso da derrota.

E te disseram bruma,
incerteza, vulto
que se agigantava
nos confins,
de espada em punho,
e que avançava sobre
os inimigos
como a águia avança
à novilha
dispersa da manada.

E te quiseram glória,
ensejo, litania,
barco lento à brisa,
abrindo em sua passagem
o flanco da folhagem
sobre a superfície d’água;
nau que caminhava
em busca da fortuna
e que beirava as margens,
calma e maviosa.

Eis que foste
corpo alado, ventre
em fuga, alerta,
em fuga, sempre em fuga.
E foste sobretudo a vaga
que beija os pés do forasteiro
ao cabo da viagem,
mas que não ficava
e ia, sempre esquiva,
no lombo das tormentas.

Hoje percebo claro
o engano da batalha:
eras a hera viciosa,
chuva
em pastos inundados,
a que não se soube
e não se encontrava
em caminhos brandos
(fuga, sempre em fuga,
cavalo em disparada).

Eras a impiedosa
que fingia rumos,
que enganava e ria
dos que a acalentavam,
que voava rápida
aos batéis da luta
e voltava ao Letes
para cantar vitória
aos mortos da chacina,
e maltratava!

Mas eras também
drama, doçura,
voo largo,
o vento fraco e a água
correndo lenta
pelos túneis de granito e turfa.

Eras, no entanto,
leve e passageira,
a indecisa, claudicante
e vaga,
a quem chamavam

dúvida.

*

Poema


Nada temo.
Ninguém ouve este canto
ouve
o baque surdo, o remorso.

Dores, não as vivo;
chagas, não exponho.
Já não há mais
onde debruçar lágrimas.
Enigma tolo, ira, tristezas...
Aqui não cabem rosas.

Dores, as que vejo.
Cartas, não as leio.

Nunca foram escritas
as palavras-névoa
nem por mim sopraram
seus ventos, seus grafismos,
sua doce-amarga pena.
Deixo-me restrito
a vãos telefonemas
de rostos que não vejo
entre as paredes gastas
do úmido escritório.

Nenhuma sai da boca:
as abissais palavras
vagam entre as pessoas
sem tocar meu rosto,
sem deixar na pele
a brasa de sua marca.

Vou-me, doente, afásico,
passo triangular
de quem bebeu.
Não bebo.
Nem gozo dessa fuga
eventuais vapores,
alegrias vagas,
fala divagante.

Antes fico aéreo
de estar sóbrio
e nu
enquanto sobram torsos,
seios, bocas, balas,
olhares lânguidos
em esplêndida vertigem.

Vou-me. Difícil é
suportar a aurora,
seus dardos de esperança.

Passo a passo, curvo-me
ante os que gritavam,
deixo-lhes a irritante calma
dos que não se abalam.
Surja a tempestade, calo-me
a seu furor de justa.
Sei do seu desígnio
de atormentar os homens,
de prosseguir na busca
de viventes dignos
em que debruçar
os braços abissais.

(Ninguém ouve se falo
de aflições, se gelo
ante os vendavais.)

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