Pour Elise






Bela publicou uma foto no Facebook que me evocou lembranças de quando nos conhecemos, há mais de 20 anos. Ela quase uma menina (hoje uma senhora), a encenar teatro de rua, sempre tranquila; eu às voltas com a literatura, indo de uma cidade para outra no projeto O Escritor na Cidade, idealizado pelo poeta Affonso Romano de Sant'Anna (na época à frente da Biblioteca Nacional). 
Dos poemas que fiz para a minha menina ao longo desse tempo – em guardanapos de lanchonetes, papéis de pão e de rascunho –, ficou um pequeno livro que eu pretendia íntimo, mas que ganhou o mundo: Uma canção para Elise, cujo título é inspirado numa conhecida bagatela de Beethoven. 
É um livro, porém, ao qual ainda tento dar forma definitiva, mais para o imperfeito, porque marcado por emoções intensas e verdadeiras que raramente são aliadas da boa técnica. Apesar disso, um livro grato, pleno dessa coisa rara que chamamos amor, com gosto de maresia.
Reproduzo aqui a apresentação que fiz para esse apanhado de poemas: "Pour Elise (Eternamente)", além de três de seus escritos.




lunar


após tantas luas
ainda vejo nas curvas do rosto
branco de orvalho
a adoração da primeira vez
sempre um truque novo
um ás na manga
uma nova carta
que me faz pensar:
a cada dia encontro
nesse quarto uma outra 
magnífica pessoa

entre as damas do baralho


fevereiro


contigo estarei sereno 

em fevereiro
direi teus olhos 
como no primeiro
dia em que os vi
inteiros
na senda do caminho

tigresa atriz mulher branca 
marcada de sonhos
infinitos

hoje te vejo a ti
no calor da terra
ardente 
longos beijos
quentes

como nunca
vi


betsy


cheguei a um ponto:
poucas coisas pessoas 
me importam

ante tudo que rui
desaba

só o que és
me acalma

mui
antes de ti
só enganos

só tu
és parte 
dos meus

melhores planos




Pour Elise (Eternamente)


Conheci Elisa (Elisabete) há 21 anos, no período de minha participação no projeto “O Escritor na Cidade”, da Fundação Biblioteca Nacional, coordenado pelo poeta Afonso Romano de Sant’Anna. Era um programa que levava escritores de todo o Brasil a sair de sua região para um circuito intenso de encontros e palestras por outras ­cidades, país afora. 
Em razão de um grave problema de saúde, a ­escritora paraense Maria Lúcia Medeiros, escalada para percorrer os lugares do Nordeste, teve de se ausentar do projeto. Em substituição a ela, coube a mim percorrer o Rio ­Grande do Norte, peregrinando por umas cinco cidades, a exemplo de Acari, Nízia Floresta e... Currais Novos, este um pequeno município do extremo ­agreste. 
Após uma cansativa viagem de três horas, ­saindo de carro de Natal, cheguei a esse lugar simples, mas profundamente acolhedor, sob um calor de 34 graus à ­sombra.
Cansado, tentei dormir (o hotel se chamava Tungstênio, nome de um tipo de minério que, soube depois, em épocas ­áureas, levou à criação da cidade), mas fui acordado pelo rufar de tambores e por centenas de vozes na rua ao lado, abaixo da minha janela. 
Ainda sonolento, pensei que invadiam o prédio, que havia uma confusão, mas, para minha ­surpresa, tra­tava-se de um grupo de teatro de rua que generosamente encenava, para receber este visitante, um lírico e crítico Auto de ­Natal.
Desci algo cambaleante, apenas para não dar a impressão de desfeita, mas estava esmagado. Já havia feito antes, pelo interior do Pará, a mesma peregrinação, em pequenas cidades sem hotel, dormindo em quartos improvisados, às vezes em lugares sem água encanada. E, francamente, toda ­aquela “militância literária” já tinha dado pro gasto. Sentia-me péssimo, capaz de dormir um ano sem abrir os olhos.
O que vi, contudo, me reanimou: uma apresentação contagiante, com atores possuídos pelo seu ofício, sem cenários, mas com inúmeros acessórios que davam ao espetáculo uma dinâmica de ­circos.
Uma personagem, porém, me chamou particularmente a atenção: Madre Maria com seu filho ao colo, uma moça branca, quase translúcida, de olhos grandes e intensos. E nela pude ver a fragilidade e a força representadas com o vigor de uma atriz vocacionada. 
Era impossível tirar os olhos dela.
No fim da apresentação, fui cumpri­mentar os atores um a um. Ao tocar as mãos dela, assim tão próximo de seu olhar tranquilo, senti que aquele ­contato, por um acaso breve, mudaria a minha vida (e a dela) naquele instante, embora ainda não soubesse a plena verdade desse fato. 
Tempos depois, voltamos a nos encontrar, no Maranhão. Fazia calor, a praia de Ponta da Areia, ao sol de verão, brilhava como esmeralda. No caminho que vai dar nas pedras, entre dezenas de conchinhas do mar, estava ela, sempre estava ela.
Ali tive a impressão de conhecê-la há tanto ­tempo... 
Casamos anos depois. Tivemos três filhas.
Enfrentamos para ficar juntos quatro tempestades, dois tufões e cinco maremotos. Mas sempre foi uma grande alegria estar com ela.
Aqui exponho algumas linhas tortas desse sonho que vivo acordado dia a dia. 
É muito mais uma homenagem, um livro íntimo que não pretende ser literário, mas francamente emocional. Tentei que essa respiração da vida toda se transfigurasse em alguma poesia, as cartas que escrevi... Mas foi difícil. 
Ficou algo, uma bagattella certamente, um jogo despretensioso de palavras, um aceno de poema, tudo porém muito menos, tudo bem menos que o imenso amor que, desde que a vi – e sempre –, a ela devoto, eternamente.
O título Uma canção para Elise foi, por isso mesmo, inspirado numa bagatela de Beethoven para piano, em lá menor, intitulada Für Elise (Para Elisa), singela, belíssima, cuja partitura foi reproduzida no fim do ­livro.



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