Humanidad: Casa de Demolição


O meu último livro de poemas, Humanidad, foi escrito quase em transe, de "uma só penada", numa noite insone. Eu estava impactado por uma declaração do físico Stephen Hawking acerca das possibilidades de sobrevivência da espécie humana no planeta. 
Não é das mais otimistas a visão do cosmólogo, talvez a mente mais brilhante do mundo que conhecemos. 
Segundo ele, a humanidade não tem mais muito tempo, quem sabe tempo nenhum, se considerarmos a escala cósmica.
Para além dessa matemática universal, mas não tão distante dela, há muitos que argumentam que a grande questão não é cogitar como estará o Homem daqui a 200 milhões de anos, mas saber se sobreviveremos a mais um par de séculos – diante de tanta imprudência, insensatez e desrespeito de quase todos para com todas as espécies (a nossa inclusive) e o planeta.
O poema transcrito a seguir, também intitulado Humanidad, longo, difícil de ler (eu sei) porque angustiado, feito em escrita um tanto automática, fala dessas questões. Mas não tente compreendê-lo como um texto linear, "interpretável". Não é uma narrativa com começo meio e fim. É um grito. 
Deixe-se, portanto, levar pelo som... e pelo susto.



"Humanidad" é um livro distribuído como e-book pela Amazon.com

Humanidad


Quando à noite
cair
o último dia
da Terra
– fuga dos raios de Sol
sob a janela,
o pó dos homens
a evolar do (sub)úmido asfalto –,
a penumbra avançará
seu manto de seda
sobre todos os homens.

Soluços de penedos,
árvores seculares,
matas fechadas,
círculos de fogo,
leoas inquietas
nas savanas,
em pálidos céus de agosto.

Nunca mais estarás comigo.
O mundo haver-se-á
tragado pelo forte fumo
de Zeus
que arde em todas as coisas.

A nossa pele será sedenta
do que não sabe,
súbita e verde
das oscilações do tempo,
tarde e manhã evaporadas
sob a chuva de pedras
das indecisões calcárias.

Rios transbordantes
descerão do alto dos edifícios
sua salobra água de alumínio
e vento, em silêncio,
o eloquente silêncio
das monumentais derrotas
que tivemos.

Raios, rastros
diante de nós
consumirão a gaze
das gazelas,
os idílios submersos
sob séculos
de uma devoradora fome 
de famintos.

Inútil
deter a força
da tempestade.

Innnn siiiii shhhs.
As sirenes ecoarão eternas,
as ruas estarão fechadas,
as beatas (com seus olhos bestas)
vazarão seu viscoso verdeazul 
preconceito espumoso
contra o humano mundo
das coisas que erram
– porque erra o mundo.

O coração da nave arderá,
implodido de ansiedades
– palms, micros, micra,
aeronaves, altiplanas aves
de platina e ópio,
celulares,
seculares ansiedades
divididas com a derradeira
boneca inflável.

A chuva permanecerá
ácida e constante
do lado de fora,
a derreter nos portos sombrios 
a última carga d’esperança
que envileceu
à espera das inações
da alfândega.

Os cães morreram.
A água das calhas
(em aço inoxidável),
o veio das caixas
(de amianto),
o gordo aquoso
das barricas
(marmóreas) 
no alto das torres 
de alvenaria e palha
– a água estará estilhaçada
da baba dos sedentos.

Esperaremos assim 
por quanto tempo?

A quanto infortúnio 
fecharão o rosto
– frios braços,
dedos lassos –
os que só odeiam? 

Sangrando os pés 
as pedras
ao pé de sagradas montanhas,
no alto de inúteis degraus: 
quando descobrirão 
os homens
as falas
que conduzem a  falsas
santificações?

Pálido e doente,
cada vez mais pálido e doente,
arqueado entre as cercas,
há mil horas,
soterrado pelas perdas
de mil palavras tontas,
mil injúrias
atiradas no rosto de quem amas,
suportarás como
a angústia do Eterno?

Zum zum! Um dínamo
na cabeça, uma qualquer
bomba de um qualquer titânio,
um hidrogênio raro
capaz de deixar vivas
só as pedras no raio de
um quadrilhão de almas
em desespero.
Arma de ensurdecedor
som agudo trovejante

Trummm

como os gritos do degenerado.
De pé somente os edifícios azuis,
– lindos – a cintilar sua oca matéria
de arrogância e éter,
a refletir na arqueluz faiscante
dos tetos de vidro
a nossa imbecilidade.

Desaparecidos
finish
da face do planeta,
quem descortinará
a cantante face 
que tivemos?

Quem ouvirá
nossa alegoria
e sorrirá (ri) 
conosco
a nossa tímida
alegria?

Quem celebrará
os achados da 
brutal ciência
que erguemos
sobre o Homem
e apreciará
bah
as reflexões
de nossa mais 
insípida
filosofia

– se de repente
desaparecermos
como ná de nada,
nó de nódulos,
pátina de pó,
tornados vã
poeira cósmica?

Como nos contentar
em ser mi de migalhas,
se nascemos deuses?

Existiremos afinal
para finalmente ser
somente o arco-sopro 
de um surto
planetário
duns dias,
consumidos
por enquanto aqui
no tumulto das horas,
no tempo monótono
sem fim 
das casas de família?

A vaga luz
que nos sobra
no rés das réstias
dos quartos úmidos
em que estamos 
soterrados
ficará nas frestas
do último suspiro
suspirado.

A ânsia de sobreviver,
a luta da consciência
contra um mar,
minuto a minuto,
é o que nos deixa assim
vítimas do grito,
a desesperançar
na linha dos tiros
atirados a esmo?

Ou será uma outra
matéria dúbia
a nossa,
de graves dubiedades,
a se rebelar constante
contra a divindade
de nossa natureza?

Por que fugimos tanto
na direção do ar,
levando na derrota
do caminho o óleo
saturado dos faisões
do dia, tostados no fogo
das fogueiras
onde ardem os potros
e o sangue das novilhas?

Seguimos porque
na contraluz do engano
nos apetece o gozo
momentâneo
de corpos suados,
de ilusórias coxas
e bustos torneados
(apesar da fausta
futilidade
trazida na algibeira,
de autopesos carregados
na inconsciência
atroz corrupta).

A volúpia do ter
somente para si,
a corroer silente
a alma que nos resta,
reta,
é o que nos desmorona,
pálidas imagens,
cópias malgravadas
em carrara
de um imperfeito Altíssimo.

Escuta: algo
nos diz, no vento
que voa leve
(no ouvido
de toda gente
que não se satisfaz
no olvido
dos demais da Terra),
que há um lavor
a nos dizer
a seta
do verdadeiro
humano.

Ouça-o,
na fúria do vento
que tão leve voa
no lume desta tarde:
algo nos diz,
ali entre as palavras,
da paz que inda 
nos resta
e arde como fogo.
Escuta!
E se já não puderes
emitir um som de prece,
ergue para o alto
o olhar que falta
entre os olhares todos
que deste para o mundo. 

O ter somente para si
enquanto o outro
amarga a pobreza
do mundo;
a fartura como mãe
do desperdício,
enquanto outros
amargam
o só barro do mundo;
a vida entre perfumes,
quando muitos
desintegram-se em inodores
na podridão do mundo...

Isto é o mal
em estado puro.

E se já não o vemos
nas cortinas de veludo,
nos apetrechos
que nos deixam mudos
ante o último
artefato tecnológico,
é que já nos perdemos
em desumanidade,
nós que tínhamos tudo
para Ser,
e nos contentamos
a tudo pertencer
tão próximos do nada.

As artérias entupidas
de esclerose,
o veneno nas veias
a vazar do último
banquete
em que comemos tudo,
em que bebemos todas
as taças que nos deram
até a explosão
dos músculos
flácidos
de ociosidade
e glutonaria,
isto é ah
o cândido amarelo
de assados e frituras.

Olhemos para o lado,
àquele que sofre
silente,
e então seremos(?)
de verdade.
O que nos falta,
de estarmos verdes,
de não ver
o vermelho sangue
dos irmãos exaustos
na labuta inútil?

O esforço das mãos
já não vale o trabalho.
Nas mãos corre o baralho
de lançar a sorte,
um lance de dados
a esperar a morte
enquanto a vida escorre
por entre os dedos,
nas grossas falanges
calejadas
do chão tumultuado.

Viver morrer escravo
do que se faz na vida
e que desfaz a vida
a cada dia um pouco
até deixar só pele
e osso degradado
na desumana lida
dos dias de trabalho.

Madeira porca parafuso
esterco faina parafuso
tijolo telha parafuso
fuso roca parafuso
terno gravata parafuso
cordeiro ave parafuso
serra madeira parafuso
capô calota parafuso
homem espantalho 
paramudo.

Labutar, tecer, lavrar,
as roupas da esperança, 
escadarias,
até restar a neve
de lembranças pálidas,
alva neve fria
de enregelados dias
(antes que leve tudo
a lama das vertigens).

O amor humilhado
entre paredes,
os dedos já não tocam
a pele gasta, o rosto
dilacerado pelo tempo.
Há quem tente reter
o tempo, deter
o amor no vento.
E hajam pós, pinturas
faciais, esteiras, 
esteroides anabolizantes,
esterilizados amantes 
de uma noite, 
afeto cravejado
de pérolas frígidas.



Quando ouço dizer
Devemos salvar
a Terra,
penso:
A Terra em sua
trajetória cósmica
de zilênios
salvar-se-á a si
não importa
o que desaconteça.

Nós é que iremos
nos desfazendo
em massa informe,
vapor de espécie,
limos do Universo.
Nós é que iremos
em espírito
talvez
a uma outra
apagada estrela,
talvez
dejetos do planeta.

Como é possível
que uma frágil nave
mergulhe nas sombras
penumbrosas
desta Via Láctea,
na borra nebulosa
de intensos asteroides
e buracos-negros,
e de lá retorne
intacta
quiçá mais bela
ave?

Terra...

Há hoje em um
lugar qualquer
do Ártico
100.000km2
de matéria plástica 
lançados no oceano.

O que farão
(o que farás)
ao descobrir
intacta
sob essa camada
de flácida nervura
a resplandente
condição de aurora
de toda a Humanidade
(perdida para sempre)?

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