Um conto de Valsa para Edgar Furioso
Há dez anos, escrevi um livro de contos às pressas, "Valsa para Edgar Furioso". Precisava testar uma impressora digital para fabricação de livros e resolvi fazer isso com meu trabalho em preparação, uns 50 exemplares somente. A capa ficou uma tragédia e os contos ainda eram provisórios, de certa forma inacabados. Agora estou a concluí-los e ao que parece teremos uma bela edição. Eis aqui um dos contos dessa nova ópera.
Canção para ninar Ângela
Encontrei a estrofe num folhetim de bordas roídas e páginas
amareladas. Volta-me a lembrança o odor ácido de edições empilhadas ao relento.
Em qual biblioteca, em que porão? Do autor, não sei o nome. Ficou-me apenas a
sonoridade de concha abandonada dos versos, a ressonância de pólvora e
bacamarte das palavras que me atiraram sopros de sal na memória:
Não trago mais que a tristeza
de ter ferido ferido
meu mais íntimo reduto
em que meu Deus – santo e urso –
habitava,
já não habita.
Agora recordo que naquele dia eu
separava revistas, livros e jornais dos volumes que eram de Ângela. A sala ficou
abarrotada de ponta a ponta de publicações velhas e novas, algumas retiradas do
fundo do baú de mogno com que eu a presenteara anos atrás e que trazia gravados
na madeira os nomes Edgar e Angel. Um anjo que ela não era.
Eu caminhava entre livros e
páginas de jornais como quem transita por um labirinto – não em busca da saída,
mas para desvendar mistérios nos desvãos.
Parava diante de um ou de outro
livro e, ao fixá-lo, num relâmpago me projetava em voo livre e astral para
trás, súbito viajante do tempo, em direção a um passado nem sempre nítido,
mistura de realidade furtiva e sonho ruim. Ia como um sedento em busca dos
instantes em que senti a vida como verdadeira dádiva, sedento daquela água boa
e pura que me escapara entre os dedos e que agora era menos que vapor.
Havíamos nos separado há duas
semanas, depois de 12 anos de casados.
Eu recolhia sem pesar coisas
minhas no chão daquela casa em que nos últimos anos nos despedaçáramos. O
silêncio em redor me dava a sensação de estar só num templo, embora lá dentro
ela aguardasse a minha saída, trancada à chave com as crianças, sem emitir
nenhum ruído.
Diante de mim, os livros se apresentavam
como no chão de uma vitrine. Antes de começar a recolhê-los, dancei algum tempo
entre eles, atingido frontalmente pelos raios de sol que sumiam lá fora e
invadiam as janelas em seus últimos estertores de luz.
Depois, com zelo em alguns
casos, em outros com repugnância, passei a empilhá-los nas caixas como quem
depõe sobre mãos feridas os cacos do jarro apodrecido, derrubado talvez não sem
querer e cuja perda não se lamenta minimamente. Encontrá-lo inutilizado representava,
pelo contrário, um grande alívio; representava a certeza de não mais assisti-lo
minar o ar com sua presença de séculos e suas flores murchas no canto da sala.
Mas ali não eram vasos ruins. Tratava-se de livros. Os meus livros. E minha
vida sempre fora dividida entre a palidez do mundo real e os fogos de artifício
dos livros.
Os livros, por sinal, trouxeram
as mulheres da minha vida e as afastaram como quem foge de um demônio
contagioso. Era fatal.
Lá dentro, Ângela passou a ouvir
uma ária qualquer que eu não distinguia. As crianças zoavam agora como animais
presos. Ela não os deixaria sair enquanto eu não me tivesse afastado, o carro
distante quilômetros daquela casa de paredes amareladas, de vidas amareladas a
quem o passar do tempo emprestava maior apatia.
Eu agora estava só e não lamentava. A verdade
é que eu queria mesmo estar só, de uma solidão de tal modo perfeita que minha
própria presença me fosse um incômodo. Nenhuma coisa mais tinha importância.
Talvez sentisse ali, entre os livros, amontoados de saudades da pequena Maria,
a quem amava de um amor quase irreal e ao mesmo tempo mal exercitado. Mas
depois de anos de uma vida que se passara tal qual no fundo duma geleira,
precisava de tempo, de um pouco da luz lá de fora para voltar a aquecer e
devotar-me a mim e aos outros.
Não se pode amar sob o gelo. O
coração endurece. É preciso aquentá-lo às vezes ao ponto da explosão para que
volte a bater com algo de vida.
O som da música aumentou no
quarto. Eu já podia distinguir a ária de Mme.
Baterfly, aquele banquete de incompreensão e tristeza, aquela mesa farta de
impiedade, aquele bufet de amor
maldito. Ah!
Observo com vagar o volume que
passo à minha outra mão neste momento: Os
frutos da terra, de Gide. Rapidamente me vem ao pensamento a frase curiosa
e estonteante: “Não desejes, Nathanael, encontrar Deus fora de toda parte”.
Abro saudosamente o livro para encontrar: “Toda criatura indica Deus, nenhuma o
revela. Desde o momento em que nosso olhar nela se detém, cada criatura nos
desvia de Deus”. Recordo que essas palavras me fizeram, desde o momento em que
as li pela primeira vez, num dezembro terrível de muitas chuvas no leste da
ilha, decidir que começaria lentamente a me afastar de Ângela, porque cada vez
que o meu olhar nela se detinha desviava-me não de Deus, mas de mim mesmo; de
mim que começava a me achar pobre e infeliz. E quando alguém começa a achar-se
pobre e infeliz é porque a amargura já se lhe tornou uma companhia
insuportável, um comparsa a incentivá-lo na aceitação de tudo o que há de
tedioso e banal.
O tédio era então meu mais nobre
parceiro nas rodas de uísque, nos bares em que a respiração era pesada e eu me
sentia mal, carregando no peito um coração de chumbo.
Apesar de tudo, inda hoje me aperta
a dor no lado esquerdo, mas estou lúcido. E mesmo naquela zona difícil de
encarar em que se encontram velhos e embolorados livros, com um cheiro de
azedume e suor abafado, ainda respiro bem. Melhor que antes. Cogito, assim, em
como uma relação deteriorada é capaz de drenar o ar limpo e deixar amônia em
volta.
Havia dias, naquela casa, em que
eu me sentia – acho que é assim que todos os rebelados se sentem – numa solitária. E ao contrário daquilo que,
suponho, vivem os prisioneiros reais em seu cotidiano inflexível, havia luz e
bastante espaço, lençóis e colchões limpos – mas me faltava o ar. E o pior é
que dentro de mim eu sabia que Ângela não tinha culpa. Que eu não tinha culpa.
Que ninguém tinha culpa.
Avalio nesse momento que a
felicidade depende das escolhas que se faz a cada segundo. Os pragmáticos
chamam a isso capacidade de decisão.
Essa condição é definitiva para aqueles a quem é oferecida a dádiva de optar
por este ou aquele caminho. A verdade era uma só: Ângela e eu havíamos nos
escolhido mal. Eu soube disso desde o primeiro instante em que a vi tecendo
mantas de crochê no pátio da universidade e fixei como um curioso, na verdade
como um lúbrico, os seus olhos claros, de um verde levíssimo que era mais uma
sombra. Sim, havia neles a insegurança dos bêbados (mas isso ainda mais me
estimulou a encará-los). E havia também em Ângela a voz e o gesto trêmulo dos
nervosos ou desequilibrados. Não, ela não era uma desvairada total. Alguma
carência, uma certa possessividade, mas nenhum vácuo monstruoso na
personalidade inquieta, nada além de fissuras na alma, que as temos todos.
No segundo dia em que ficamos
juntos, disse-lhe ao ouvido um poema que era o retrato de minha ingenuidade
quanto ao que ela era:
Anjo
no nome, angélica na cara.
Isto
é ser mulher e anjo juntamente...
Mas por que estou dizendo tudo
isso?
Pára
meu coração!/Não Penses.
Prossigo recolhendo os livros no
chão da sala. Uma sirena ecoa lá fora, abrindo caminho entre os automóveis.
A cruz vermelha da ambulância
atinge meus olhos como um alerta. Não precisava. Sei que um dia estarei lá,
tentando sobreviver a uma qualquer síncope, vítima de um evento infeliz. De
qualquer forma, estarei sozinho como o ar fugindo pelas frestas, apertando a
mão de enfermeiros de urgência, clamando em silêncio àquele estranho que me
salve.
Sei que não virá um anjo ao meu
encontro. Sei que as portas estarão fechadas e desconfio sinceramente de que
ninguém estará à minha espera do outro lado. Certamente haverá um outro lado.
Creio nisso.
Contei certa vez a Ângela uma
experiência ímpar em minha vida. Acredito que ela irá se repetir pelo menos
mais uma vez ainda, quando se aproximar para mim o fim de tudo (bem, de quase
tudo). Saibam, porém, que não sou místico.
Assim se passou: eu tinha uns
doze anos, voltávamos da praia no fim da tarde. O caminho era longo e, no meio
do trajeto, paramos para um mergulho num rio muito agitado, profundo, gelado e
de forte correnteza. Eu já sabia nadar e fui caminhando pela borda escorada do
rio, construída em pedra bruta e alvenaria. De repente, escorreguei, sendo
levado rapidamente para o fundo.
Percebi, afundando, que seria
impossível voltar à tona: a correnteza fazia girar o meu corpo sobre mim mesmo
e me arrastava para longe. Eu me sentia levado para a morte.
Até hoje não adivinho por que
contorções do espírito me mantive absolutamente sereno e conformado com o meu
destino. Ali, naquele momento, emaranhado no que seria provavelmente o meu
lugar final, abandonei-me à sorte, deixei-me ir sem resistência, tomado de uma
candura inexplicável. Deixei-me ir. Em paz...
Mas subitamente fui erguido por
um braço poderoso. Um homem cujo rosto, por mais que tente obsessivamente, não
recordo até hoje, me tirou do fundo com força titânica, levando-me para o alto
pelos cabelos. Devolveu-me à vida que tenho hoje.
Desde aquele dia, em razão da
ternura dos primeiros momentos daquele instante, a imagem que guardo da morte é
a de uma jovem senhora mansa e veludosa.
Mas o que pretendia relatar como
experiência ímpar é uma outra coisa: ali no fundo do rio, à certa altura,
quando para mim morrer cristalizou-se como um acontecimento inevitável (eu
acreditei firmemente nisso), os episódios de minha vida começaram a passar
diante de mim como num filme, de forma muito simples e muito certa, sem menos
nem mais. Minha vida toda diante de meus olhos, numa fração de segundos, numa
velocidade impossível.
O que aconteceu realmente nunca
entendi muito bem. Porém, mais tarde, ouvi pessoas de diversas partes do mundo relatarem
experiências semelhantes, momentos em que tudo para elas pareceu terminar, experiências de quase morte.
Ângela sempre se preocupou com
questões de vida e morte e vive em função da Eternidade. Eu sempre segui pelo
mundo mordiscando o agora, querendo nacos da existência provisória. Mas sei que
não estou nem um pouco certo, que sou um tolo quanto a isso.
Olho em volta e decido deixar ali
todos os livros, levar de mim, daquele desencontro, só eu mesmo. A ária ainda
ecoa sua tristeza pelo quarto. Penso melancolicamente no absurdo de ir lá,
bater na porta e me despedir – de Ângela, das crianças – mas desisto. Desço as
escadas levando uma confusão de sentimentos que me pesam, até que a noite me
atinja com sua navalha de sombras e me convoque a atar novamente aos pés os
grilhões do dia seguinte. Ligo as chaves do carro e penso (a lua imbecil lá no
alto) que, no fundo, a vida humana toda consiste em espalhar cinzas pela casa,
ulcerar carne, pisar lodo e arrastar correntes.
Pára
meu coração!
Não
penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó
meu Deus, meu Deus, meu Deus!
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