Primeiro capítulo de O despertar de Fênix


Há alguns anos, um amigo editor me provocou a escrever ficção científica. No início, achei a proposta sem sentido, porque o meu texto à época era essencialmente poesia. Mas depois de concluir o romance "A noite dos casacos vermelhos", passei a achar interessante a ideia. Guardo há algum tempo os primeiros resultados dessa experiência entre meus escritos. Decidi retomá-la agora, no meio de uma enlouquecida produção, em que minhas noites estão cada vez mais curtas e o sono é raro. Penso em publicar aqui a sequencia de capítulos, um a cada semana, talvez.




Capítulo 1


No ano de 2030, um grupo de cientistas canadenses descobriu um composto gasoso capaz de deter a degeneração dos corpos. Era uma forma de criogenia avançada com a qual se conseguia obter resultados surpreendentes no congelamento – e reavivamento – de rãs, répteis e, finalmente, pequenos mamíferos de laboratório.
Aquele fora um dos momentos em que certamente a mão de Deus, farta dos fracassos de nossa espécie degenerada, moveu-se para ajudar a trajetória de sobrevivência da raça humana sobre a Terra.
Só muito mais tarde descobri por quê.
Dez anos antes, uma estranha pandemia de desconhecida origem passou a dizimar a humanidade. A comunidade científica internacional – biólogos, médicos, geneticistas e especialistas de todo gênero – não conseguia saber ao certo a natureza daquele vírus mutante que se espalhara por todo o Globo.
O mal não poupava ninguém, alcançava todas as classes sociais e em cerca de 72 horas eliminava suas vítimas. Até aquele momento nenhum dos infectados conseguira sobreviver.
A ação do vírus era rápida e letal, e não vale a pena descrever aqui o sofrimento daqueles a quem atingia.
A propagação da moléstia dava-se pelo ar e por outras vias de contato, em velocidade nunca vista. Impotente, o Homem pela primeira vez constatava sem saída o avanço das horas para o seu fim. E no ritmo em que ocorriam os contágios, o fim estava cada vez mais próximo.
Tal como em todas as grandes tragédias que vivenciamos, também nesta proliferavam os cadáveres nas casas e nas ruas; os saques em todo lugar eram constantes. E muito rapidamente também o caos se instalava.
Sempre fomos assim: diante das ameaças, sacrificamos o próximo; roubamos e matamos para manter a integridade pessoal e buscamos desesperadamente... sobreviver. Basta perceber na contraluz do espelho a sombra da morte para perdermos o mínimo que nos resta de lucidez e humanidade. Saímos de controle.
Era impossível trabalhar em qualquer ambiente e o que se via em cada lugar era um aglomerado de seres desconexos.
Logo se seguiram os linchamentos,  assassinatos, suicídios. Os mortos se amontoavam por todo lugar, aos milhares.
Os que não eram vitimados por Fênix, nome com que se batizou o vírus, morriam em razão da enormidade de outras doenças decorrentes da sede, da fome, da insalubridade que dominava o mundo.
O vírus tinha prodigiosa capacidade de se modificar e regenerar-se quando atacado, e adotava a cada investida uma nova camuflagem.
Até ali, parecia impossível detê-lo.
Tudo estava às véspera de acabar.
Devo dizer que fui um dos que resistiu por mais tempo ao ataque do Fênix, talvez por ter herdado uma afortunada constituição genética de antepassados índios, talvez tenha sido por pura sorte, não sei...
Eu tinha então 55 anos.
Pude assistir à degeneração de quase tudo que teus olhos um dia viram, caríssima amiga: o ser humano, como nunca antes, a encarar perplexo a sua derrocada.
Mas aquele não seria ainda o momento do soar da última trombeta. Infelizmente.

Numa cidade turística e pesqueira da província canadense de Quebec, Bas-Saint-Laurent, um grupo de cientistas há alguns anos estudava em segredo formas avançadas de congelamento de corpos vivos, em grandes laboratórios construídos às margens dos rios gelados da região.
Patrocinados por um extraordinário e enlouquecido magnata, agiram o tempo todo a partir de uma “visão mística” que acometeu em certa noite a filha mais nova do trilionário excêntrico.
O ano era o de 2008. A menina de 14 anos, que sempre fora “saudável”, embora excessivamente tímida, mergulhara em um transe sereno no qual passou a narrar em detalhes o que deveria ser feito pelo pai para “salvar o mundo”.
O episódio, porém, não mais se repetiu.
A garota, saída do transe, não lembrou de nada do que havia ocorrido, mas durante muitos dias o pai não lhe esqueceu o calmo semblante de anjo e os olhos profundos e límpidos com que ela descrevera em minúcias o lugar e os ambientes em que deveriam ser iniciadas com urgência as pesquisas de criogenia que ela determinara em seu delírio.
Os amigos consideraram loucura que  o magnata tivesse dado ouvidos à filha em transe, mas assim ele o fez. E em menos de um ano estavam concluídos os laboratórios de Bas-Saint-Laurent.
Foi lá que eu e mais 55 homens e mulheres voluntariamente nos submetemos a um processo de congelamento ainda em experimentação, também denominado Fênix, alimentado exclusivamente por energia eólia e uma gigantesca parafernália solar.
Fênix ironicamente viria a ser combatido por Fênix.

A ideia era que, após o congelamento, pudéssemos ser despertados num futuro longínquo no qual tivéssemos condições de enfrentar aquele mal ou ele já tivesse naturalmente desaparecido, por conta das mudanças geológicas, biológicas e ambientais que a Terra experimentasse. Mas tudo era uma incógnita. Era impossível prever o que iria se passar. Sequer sabíamos se realmente poderíamos ser despertados depois de décadas, talvez séculos, de congelamento. E por quem? De que modo?
De qualquer forma, na situação em que nos encontrávamos naquele momento havia poucas chances de sobrevivência. Àquela altura, mais de 75% da população do planeta havia sucumbido a Fênix, em pouco tempo.
Os 56 voluntários do projeto, eu inclusive, haviam sido escolhidos por conta da resistência que mantinham em relação ao vírus. Era, contudo, só uma questão de tempo para que o Mal encontrasse a forma exata a assumir para nos eliminar. Isso já havia acontecido com outros “resistentes”, nós sabíamos.
Eu sei que você foi uma das escolhidas, amiga querida, mas decidiu não participar da “experiência profana”. Você preferiu enfrentar o mal aí mesmo, em seu próprio  tempo, embora sem qualquer chance.
Acontece que a experiência deu certo.
Estas páginas, para seu espanto, foram enviadas a você do futuro.
Estou exatos oito séculos após o ano de 2030.
Tudo o que vi e passo agora a contar a você, agradeço a Deus que seus olhos não viram.
Fênix era em verdade  uma bênção.

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