"Estanho e cobre" é um de meus contos de juventude, um dos textos de Valsa para Edgar Furioso, livro que sairá em novembro em segunda edição revista. Escrevi-o aos dezenove anos, inspirado num estrangeiro soturno, distante e bom que conheci remotamente, amigo de amigos, um ser admiravelmente solidário que se perdeu (ou se encontrou) no mundo.


Estanho e cobre
Adensa a umidade no chão.
O peso das mãos fixa na argila um rosto.
Na moeda de barro desenha-se o perfil de César.

De nada adianta se te falo por enigmas,
se o canto sai da boca como os ais
de um renegado.
És tu quem modela o barro.
És tu, crível e incrédula,
que podes com um sopro estilhaçar
o orgulho do Imperador.
E, no entanto, franqueias teu lar
ao infame,
abres tua porta com tamanha ânsia
à espada, à clava,
ao que te esmaga.

Na primavera de 1980, John Haeckel, poeta e filósofo renegado, ainda apascentava os olhos e nutria o espírito na calma e distante Floresta Negra quando sua mente aspirou por terras estranhas e paisagens exóticas. Ouvira falar num país tropical que abrigava um povo (diziam) talhado a um dos versos de Rilke: “Homens acostumados a cantar dentro do suplício”.
Ajoelhado, rezou por quatro horas, sem desviar os olhos do chão, crivado pela dúvida, até que, convicto das bençãos de Deus, saiu em viagem. Deparou ao longo da jornada indivíduos pérfidos, mulheres atormentadas, crianças cujo rosto era o retrato de uma violência inominável, vítimas de pais e irmãos a quem a miséria tornara hediondos, bestas-feras. Viu a luz se apagar na densa treva do ciúme nodoso que transformou mulheres belas em máscaras de horror. E assistiu a crimes, insensatez, injúrias, portas fechadas, socos, histerias e lágrimas em ruas desertas. Viu o que viu e mais não vira se diante do mundo pudesse a si cegar-se. Mas não pôde. “Se volvo o rosto, deparo horror. As almas gemem. E eu, com Deus para meu consolo, não suspiro, não morro. Dei-me a um cotidiano ingênuo, apagado de iniciativas, entre rezas e lamentações, querendo a paz dos homens. Protegido pelas grossas parede da abadia, só conheci santos de gesso”, lamentava em vão. E seguia.
Tardou para que aqui chegasse. E chegou sombra de gente, farrapo humano. Estuporava em calor a cidade, iluminada por um horizonte azul de faca. Afável, manso, contava, sim, das peregrinações e de lugares estranhos por onde passara. Falava pausado. E quando mais se esperava, na ânsia da aventura, ficava de pé, calado horas e horas, olhando pela janela a chuva que caía, o céu que trovejava, o vento aprisionado no tumulto da rua. E entre os ouvintes flutuava um bafejo de desconfiança: ele seria... louco?
Queria estar anônimo entre as pessoas. Observava, ouvia. “Esta sociedade está enferma, como tantas que vi, mas há uma diferença: acostumou-se ao cinismo. Aqui se rechaça o homem pérfido, mas se do alto de sua perfídia resolve, uma vez que seja, dar pão aos pobres, é eleito pela turba. Aqui, de bom grado, rende-se aplausos ao enganador de milhares, ao mentiroso das massas e ao assassino de legiões – se ele vota, do pedestal de sua importância, uma palavra ao humilde. Esquarteja-se, no entanto, o esfomeado ladrão de galinhas”.
Esteve pouco tempo entre nós. Não suportou a maledicência (mais avassaladora que a falta de pão e de agasalho). Deplorava que irmãos da mesma miséria fossem meliantes de seus iguais, traidores, vendidos, crápulas, covardes. “Uma sociedade que se atirou aos porcos, que perdeu a noção de solidariedade e confiança, que atirou ao lixo mais imundo o imenso valor da verdade...”. Ardia ao pensar assim, ardia porque pensava.
Desde que se foi, imaginamos que sentiria gosto de sangue e de sal se presenciasse uma vez mais este espetáculo de hipocrisia. Olharia com tristeza a nuvem de cinzas e dejetos a se espalhar por todo lugar, pesada e triste, a desabar sobre mim e ti, sobre nós todos, nesta hora exata.
Um moralista, um dramático, o Haeckel.
Seu discurso soava como uma profecia má, um canto de desesperado que não deposita fé na ação dos homens: “Tirano. Limpam tuas botas, varrem tua casa. Dá a eles comida ruim e água ­salobra, chão sem teto, e a ti erguerão um castelo. E abençoarão a comida impura que entornas em pratos rasos, seu caldo ralo. Dá, mais uma vez, água da mais suja, da mais turva. Os anjos maus te esperam”.
Deve estar agora debruçado sobre seus manuscritos, no coração da Floresta Negra. Recordará, talvez, somente os dias mais asfixiantes desta cidade de prédios opulentos, seu medio dia ofuscante, quando o calor lembrava “os bafejos do cão do inferno” (até quando tentava o humor era um apocalíptico). Era um cantor das masmorras e se assustou com nossa vocação para o infortúnio. “Levo uma inexplicável angústia, porque sei que entre vós há homens belos e de gran caracter. Esta terra se revolve em sua própria opulência. Narciso, sem suportar seu brilho, dilacera-se na própria beleza”, disse, pouco antes de partir. 
Ele sentiria náuseas ante o que vês agora, quando estes homens mais uma vez invadem nossas casas, depois de terem batido insistentemente à porta, sem que abríssemos. Ele diria coisas inomináveis a estes homens. E assistiríamos novamente àquela transformação inumana de seu rosto numa máscara de estanho e cobre, de cobre e estanho, até dormir, até dormir chorando.


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