Maior que o corpo
Iluminação
Ele havia consumido metade da vida a lutar por um mundo melhor. E o melhor era que todas as pessoas tivessem teto, leite e pão, a mesa posta, ainda que sem fartura, o calor dos amigos, a caminhada simples pelos arredores entre árvores preservadas, uma boa camisa, um pássaro, um cão.
Parecia pouco, mas suficiente. E a felicidade decorreria de termos sido assim humildes diante das outras espécies da Terra, a aceitar o mínimo; a lutar tão somente pelo necessário; a usufruir apenas o que fosse possível.
Ao contrário disso, a humanidade seguiu seu curso a querer em demasia. A salutar ambição cedeu lugar à ganância; o cérebro humano prosseguiu em sua tentativa de ser máquina. Até o coração teve de pesar cada vez menos, com suas canaletas de plástico a bombear chocolate e açúcar para as restantes engrenagens do corpo.
Dessecado pelas coisas que via se descortinarem sem sentido, ele pensava que o destino humano talvez fosse o de chegar à condição de sermos uns bonecos quase de cera, metade feita de parafusos de androides; a outra de partes clonadas de uma antiga raça hominídea.
A Humanidade se tornara apequenadamente isso.
O caminho para ser deuses seria o reconhecer que éramos nada (ou quase nada) no espaço profuso. Disto decorreria a alma maior que o corpo; o amor mais que o indivíduo; o labor além do fruto. Mas isto não queríamos.
No início e fim de tudo, havia sempre o desejo de ser grandes, irmão de todos os desejos, padrasto e pai de todos os vícios, entre eles o do ter somente para si.
É um sentimento pré-histórico similar ao da fome.
O homem primitivo sabia que ela viria.
O homem de hoje pensa que ela virá.
E segue dilacerado, dilacerando.
Daí ele pensou que lutava contra os muros de uma fatalidade ancestral. E que isso era vão.
A outra metade da vida, preferiu seguir por outros caminhos.
Cada vez mais olhava o céu e as estrelas.
Em cada ponto do Universo assistia ao que entre humanos pouco percebera: uma racionalidade organizadora, uma lógica implacável, uma coesão entre tudo, uma harmonia convulsa, um silêncio profundo.
Via finalmente na unidade de tudo a menor partícula de si mesmo, a explosão de todos os sentidos... a iluminação a que chamavam Deus.
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