O vermelho e o negro



Há um livro de Stephen King, À espera de um milagre, que originou um filme estrelado por Tom Hanks e Michael Clarke Duncan. Esse filme tenta nos sensibilizar para o fato de que o bem pode às vezes ser atingido de morte pelas injustiças, se permitirmos que as injustiças aconteçam, se deixarmos que tudo fique como está, já que está assim por tanto tempo.

Milagres não são mágicas. São, isto sim, a manifestação de uma determinada fé. Para os que creem, essa fé é capaz de agitar os céus, mover montanhas, realizar prodígios.
Eu tenho fé em pelo menos um milagre nestes tempos críticos: o de que ainda é possível transformar o mundo – em favor do bem, pela Humanidade.
Mas também sei que para transformar o mundo é necessário mudar positivamente o Homem (a espécie humana), o que significa, para cada um de nós, executar a difícil tarefa de transformar-se a si mesmo.
É preciso mudar a si mesmo... continuamente, positivamente.
E na maior parte das vezes não somos capaz de vencer esse desafio.


  • É preciso mudar o que há de insensibilidade e alheamento.
  • É preciso afastar o que existe de isolamento e egoísmo.
  • É preciso rejeitar o que há de desolação e pessimismo.
  • É preciso sair do estado de conformação e entorpecimento.

É preciso ser e estar no mundo, em vez de (como temos feito quase sempre) apenas passar pelo mundo e deixar-nos ficar assim como estamos, a cumprir os nossos expedientes, a bater o nosso cartão de ponto, conformados em habitar um mundo cada vez mais excludente de milhões de seres humanos.

Eu não irei falar neste momento dessa exclusão absurda do outro, que já é em si uma atitude sem sentido.
Irei falar de como em nosso dia a dia nos excluímos a nós mesmos do nosso próprio mundo, o que faz menos sentido ainda. 


É preciso estar e agir no mundo, para percebê-lo no que ele tem de pleno.

Eu não necessito ir lá fora para saber que o dia está ensolarado, que é agradável sentir o vento que agita as folhas, e que de muitos lugares desta bela cidade do Natal é possível ver se desenhar o rio e, além dele, perceber a extensão do mar...
Aos que intimamente sorriem neste instante pensando Isto é delírio! ou absoluta (e inútil) poesia – pois quem vos fala é um poeta –, eu posso dizer, sem medo de errar, que expresso a mais pura realidade, dura como o aço, sólida como a pedra:
O mundo lá fora é um belo mundo que nos foi dado e que não vemos, ou insistimos em não ver, cotidianamente.
Se você quiser comprovar a verdade desse fato, permita-se depois olhar para fora... de si mesmo.
Se você tiver coragem.
Eu fiz isso muitas vezes da varanda de minha antiga casa, um apartamento no 10º andar de um edifício atravessado pelo vento.

E por que falo de coragem diante de coisas tão simples?
Porque temos estado (todos nós) acovardados diante da vida, vivendo em estado normótico, estupidificados pelo pessimismo.
Sou quase capaz de adivinhar que a imensa maioria saiu hoje de casa sem dar um beijo e um abraço verdadeiro (não burocrático) na esposa, no marido, nos filhos, nos irmãos, enfim...
Imagino quantos naufragaram no desânimo de sair, no estresse do atraso, na impaciência que costumamos ter sobretudo com os mais próximos (justamente aqueles a quem supostamente amamos e que supostamente nos amam).

E não tenho como errar quanto ao fato de que praticamente ninguém aqui notou, logo cedo pela manhã, o mundo em volta: o dia ensolarado, o vento que agita as folhas, o rio pleno e, além dele, a extensão do mar...
O mundo está lá fora e não o vemos.
É um mundo que insistimos em não ver.
Pois afinal isso é poesia! E a vida exige de nós que sejamos práticos.
Tudo nos desvia do que é essencial e nos atira nos braços do ilusóri, de tal modo que a última coisa que nos ocorre fazer com a vida é justamente... viver.
Viver exige tempo; o uso agradavelmente humano do tempo, 
de um tempo que nos faça felizes.
Ora, mas quase tudo o que nos felicita raramente nos dá dinheiro.
E tempo é dinheiro.
E não temos tempo para qualquer coisa que não seja isso: 
Compra o teu ouro!

*


Eu diria que há muito saímos, em nossas vidas, do modo prático e entramos no modo normótico.
Normótico diz respeito à pessoa em estado de normose, a doença do normal (um conceito criado por Jean-Yves le Loupe e Roberto Crema, dois humanistas contemporâneos).
Normose se refere aos comportamentos, crenças e valores que levam à estagnação e à indiferença, que causam angústia e podem ser fatais; diz respeito aos nossos comportamentos de conformação e ajustamento de todos os dias, atitudes absolutamente “normais”, mas que nos causam sofrimento e paralisia, e nos prontificam para a morte.
Falo aqui obviamente de uma morte não física.
Mas há inúmeros exemplos de normoses responsáveis por mortes reais, entre elas as que decorrem de estados depressivos crônicos.
Estão entre as nossas normoses mais gerais:

A fantasia da separatividade
Sentir-se separado e independente das outras pessoas e da natureza
O sentimento de propriedade
Acreditar que as coisas que nos são dadas pela natureza são de propriedade dos seres humanos
O consumismo
Consumir excessivamente sem pensar nas consequências sociais e ambientais desse comportamento.
O conformismo
Aceitar que tudo que está assim, assim deve ficar, pelo menos por enquanto, até quando possível.

Há normoses demais para humanidades de menos.


*

A seguir reproduzo um quadro? O que temos aqui, afinal?



As respostas a essa pergunta, em geral, são a de que temos um ponto vermelho e um ponto negro.
Essa é uma visão restrita, condicionada, de uma página predominantemente em branco.
Ela (a página) é no fundo um vasto espaço branco em que há um pequeno ponto vermelho e um outro ponto negro.
E isso nos dá a possibilidade de avaliar um certo comportamento normótico de que falamos lá atrás, rapidamente: o pessimismo, que nos impede de ver o que está em volta e nos abrange.
Segundo o dicionário Aurélio, o pessimismo é a "disposição de espírito que leva o indivíduo a encarar tudo pelo lado negativo, a esperar de tudo o pior”.
Aí vocês dirão: Ah, mas então não somos pessimistas, porque não chegamos a tanto.
Eu direi, porém, aqui: o pessimismo como pensamento normótico é o que nos leva a só raramente perceber que para além do ponto negro e do ponto vermelho há o esplendor da página em branco.
No âmbito filosófico, o pessimismo se refere às doutrinas que afirmam a supremacia do mal sobre o bem e costumam levar à adoção de uma atitude de escapismo, imobilismo ou conformismo.
Essas atitudes estão presentes em nosso cotidiano quando nos permitimos:
  • seguir para o trabalho todos os dias como quem vai para o cadafalso;
  • ignorar e atender mal o cidadão (sobretudo o mais humilde) que procura os nossos serviços;
  • ser indiferentes a amigos e entes queridos;
  • exercer os mais abjetos preconceitos;
  • esquecer a ética e tolerar a corrupção e os malfeitos;
  • acreditar que a política é apenas de / e para os (maus) políticos;
  • aceitar que aquilo que quebrou fique por dias, meses e anos sem conserto;
  • admitir que o erro se torne um procedimento;
  • ser egoísta, mal humorado e grosseiro etc. etc. etc.

Isso tudo significa exercer o mais puro pessimismo.

É um pessimismo real, que nos impede de avançar, de progredir, de transformar o mundo.
Oh, não é que não possamos ser assim ou desta forma de vez em quando, em relação a estas e tantas outras coisas que sabemos ruins, mas que são capazes de nos ocorrer (afinal, somos seres humanos num mundo crítico, numa sociedade em crise).
O problema é que temos sido assim quase o tempo todo.
E isso não é só inaceitável: é ridículo diante do que somos e do que temos.
Porque apesar de tudo, temos o suficiente e estamos bem – embora nem tudo esteja bom. E sabemos disso.
A grande vacina contra o pessimismo, porém, não é ser otimista (e passivo), mas o ativismo, que significa dizer ao mundo, sempre que necessário: não, não é assim, jamais será assim mesmo.

O ator argentino Ricardo Darín, numa entrevista antológica em que perguntaram a ele porque não havia aceitado fazer um filme de cachê milionário em Hollywood, afirma: “Eu iria ficar ainda mais tempo longe de minha família. E há coisas na vida que não se compram”. E diante da insistência do entrevistador em dizer que ele poderia usar esse dinheiro para adquirir, por exemplo, um jatinho, contrapôs: “Eu não preciso disso. Quem na verdade precisa? Eu estou bem: tenho o privilégio de tomar dois banhos quentes por dia”. 
Simples e exato.
Por isso é que proponho que dentre todos os nossos comportamentos normóticos, comecemos por eliminar o pessimismo, que nos escurece (e limita) a visão, paralisa-nos o espírito e nos impede de agir.
Afinal, repito: estamos bem, embora nem tudo esteja bom.
Diz-nos o publicitário Nizan Guanaes:

É preferível o erro à omissão. O fracasso, ao tédio. O escândalo ao vazio. [...] Faça, erre, tente, falhe, lute. Mas, por favor, não jogue fora, se acomodando, a extraordinária oportunidade de ter vivido.
Tendo consciência de que, cada homem foi feito, para fazer história. Que todo homem é um milagre e traz em si uma revolução. Que é mais do que sexo ou dinheiro. Você foi criado, para construir pirâmides e versos, descobrir continentes e mundos, e caminhar sempre, com um saco de interrogações na mão e uma caixa de possibilidades na outra. Não use Rider, não dê férias a seus pés. Não se sente e passe a ser analista da vida alheia, espectador do mundo, comentarista do cotidiano, dessas pessoas que vivem a dizer: eu não disse!, eu sabia!”

*


Talvez sobre o vasto espaço em branco da página de nossas vidas – em que eventualmente haverá um pequeno ponto vermelho e um ou outro ponto negro –, creio que devemos começar a anotar as coisas, todas as coisas, que temos em nós e acerca das quais podemos dar graças à vida.

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