Sereia de fogo dos lagos de pedras verdes
Imagem: Luiz Braga (PostFace) |
Eu não estaria assim, se não fosse o fato de ter dormido tarde, o dia amanhecer nublado e o sol não existir quase infantil a estas horas no parapeito das janelas.
O mundo lá fora, assim, nunca é além do frio/calor que nos percorre por dentro as veias, rio fininho de água e óleo, leite e amoras. E há o desespero de não ter feito tudo quanto durante tantos anos, de espedaçar-se pelo meio do caminho, de ter de ouvir a voz desagradável da insidiosa que se senta ao meu lado e quer o teu mal a todo custo.
Passou a existir entre nós essa ponte intransponível que vai do ontem ao vento, do agora ao abismo.
Por isso estamos sós.
Ouvimos que são de sinos os sons que dobram naquela catedral que esquecemos no meio da floresta, que fica do outro lado da ilha, onde costumas dobrar os joelhos para pedir que haja afeto, haja pão.
Lá só habitam essas mulheres nuas que trouxeste para casa quando a tempestade varreu as margens, derrubou o lugar em que moramos e matou os peixes.
Pelas ruas cobertas de sal e areia as pessoas chegam à nave que erguemos, olham-se e se calam, depois entram cabisbaixas com os filhos que empurram pela mão, os mesmos que detestam o cheiro de incenso e suor que se espalha pelos quartos.
No céu as aves giram tontas e em círculo, agitadas – porque há a infestação desses insetos que vêm pra cá depois da chuva e nos irritam a pele úmida.
E penso que deverias estar aqui depois que sumissem do ar as nuvens pesadas, que poderias ficar comigo neste instante em que sigo a me esgueirar pelas paredes da rua estreita no rumo da catedral engolida pelo mato.
Mas faz pelo menos oito anos que estás distante, que apenas olhas os quadros amarelados e as estantes de gesso que instalamos na antiga casa que habitamos.
Em ti só há o sentimento de quem se apagou viva e corre nua no quintal varado de formigas, mulher que não prosperou, amor tomado pelo musgo, sereia de fogo dos lagos de pedras verdes, desejo que se incrustou nas cavernas de luz argêntea, abismo de onde os homens não saem mais, porque não creem, porque não voam.
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